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Livro de Miguel Sanches Neto é se compara à literatura de Lima Barreto

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Eustáquio Gomes, Jornal do Brasil

RIO - Se os paranaenses como escreveu um cronista de Curitiba não podem recusar a parte de diversão que representa a intriga local do novo romance de Miguel Sanches Neto, Chá das cinco com o vampiro, o mesmo não se dá necessariamente com os leitores de outras regiões do país. Estes podem lê-lo pura e simplesmente como um romance, o excelente romance que é, ainda que no centro da quizília estejam o célebre contista Geraldo Trentini e seu ex-discípulo Beto Nunes, isto é, Dalton Trevisan e o próprio Sanches Neto. O livro é muito mais do que um roman à clef, embora, no seu cerne, também seja isso.

A intriga vinha fermentando desde 2004, quando se espalhou o boato agora materializado de que Sanches Neto havia escrito uma espécie de biografia do contista arredio, hoje com 84 anos. Depois de uma convivência de sete anos, ambos estavam rompidos. Apesar disso, numa carta aberta dirigida a Dalton, Sanches admitiu a existência do livro e esclareceu que não se tratava propriamente de uma biografia, mas de uma ficção com personagens extraídos da vida real. A técnica, que há séculos é o sangue e os nervos da chamada ficção à clef, o discípulo a aprendera com o próprio mestre, reconhecidamente um ás da transposição das pequenas misérias humanas para o plano da ficção, nisto não poupando nem mesmo os amigos. A partir daí, segundo consta, Dalton passou a tratar Sanches como um proscrito. Sanches revidou com a publicação do livro.

O gênero tem precedentes ilustres, como o notável Árvores abatidas de Thomas Bernhard, para citar um autor contemporâneo, aliás seminal, mas é nas Recordações do escrivão Isaías Caminha, o romance de estreia de Lima Barreto, que o romance de Sanches Neto encontra o seu correlato mais natural. Um século e pico depois (Caminha é de 1909), o romance de Lima Barreto encontra em Chá das cinco o seu equivalente temático e qualitativo. Ambos são romances de afirmação, desassombrados, convincentes e despojados. Ambos têm a coragem de voltar a um realismo muito próximo do jornalismo lapidado, passando ao largo dos artifícios da prosa poética (embora haja neles poesia de sobra), sem que empobreçam ou deixem de permitir leituras paralelas.

Muito se debateu a chave em torno da qual giravam as figuras que serviram de modelo aos personagens de Caminha, num Rio de Janeiro onde todos se cruzavam na Rua do Ouvidor. Bem por isso o romance de Lima Barreto foi ignorado por todos que deviam respeito a Coelho Neto, então o autor mais festejado da antiga Capital Federal e um dos alvos de Lima, ou favores sociais a João do Rio e ao todo poderoso Edmundo Bittencourt, diretor do grande jornal carioca da época, o Correio da Manhã. Os dois únicos críticos que se animaram a falar publicamente do livro o trataram mal, embora reconhecendo as qualidades promissoras do jovem escritor. Um mau romance e um mau panfleto , escreveu Medeiros e Albuquerque. Crônica íntima de vingança, diário atormentado de reminiscências más , completou Alcides Maia. Somente o cioso José Veríssimo, já então afastado da crítica militante, depois de lastimar em carta ao autor o seu excessivo personalismo , vislumbrou nele o elemento principal para o fazer superior: talento , e em seu romance viu um livro distinto e revelador, sem engano possível . Poderia ter dito mais, se tivesse o dom da antevisão: que Caminha seria um clássico estimável entre os clássicos do século brasileiro, embora só viesse a ser reeditado mais de 30 anos depois.

O mundo de Miguel Sanches Neto felizmente é outro, se comparado com o de Lima em 1909. É autor de nome firmado e, para além da obra que já produziu, tem ainda um vasto horizonte pela frente. Já não há a crítica militante dos velhos tempos, o que é um retrocesso, mas tampouco esta é uma época de solapamentos e interdições, o que é um progresso. Seja como for, o tom elucidativo de sua carta aberta mostra nele a mesma preocupação de Lima quando procura evitar o confinamento de seu romance à categoria de sátira de salão, ou seja, a uma temporalidade perempta. Lima tinha razão ao prever que caso o livro consiga viver, dentro de curto prazo ninguém mais se lembrará de apontar tal ou qual pessoa conhecida como sendo tal ou qual personagem . O romance não apenas sobreviveu como passou a valer por si mesmo enquanto obra durável e reveladora de uma situação social e humana.

Acredito que o mesmo deva acontecer ao romance de Sanches Neto. Hoje ele é mais sátira que romance de formação, amanhã será o contrário. Da infância e da adolescência na pequena Peabiru, onde era atormentado pelo pai alcoólatra, à buliçosa Curitiba onde o vampiro transitava (e transita) nem tão incógnito assim, cultivado por uma fauna enobrecida e ao mesmo tempo esterilizada por sua fama universal, Chá das cinco é a história do amadurecimento de Beto Nunes num meio inóspito e inquinado pela disputa e pela maledicência.

Era natural que ele buscasse uma ruptura que liberasse o seu grito de autonomia e lhe abrisse caminho oposto ao do mestre, inclusive na linguagem: seca e descarnada em Trevisan, livre e emotiva em Sanches Neto. Algo parecido deve ter movido Lima Barreto em relação, por exemplo, à linguagem elegante e contida de Machado de Assis. Ele desejava menos atavios de estilo e um pouco mais de selvageria no seu canteiro de cardos.

Seja como for, nem o romance de Sanches Neto abalará um milímetro da glória assegurada a Trevisan, nem a ira do contista ( hiena papuda , araponga louca , escreveu ele num poema criptográfico contra o ex-discípulo) será capaz de deter a trajetória de Sanches Neto, cujas alturas são imprevisíveis.