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Alberto Mussa e Luiz Antônio Simas lançam livro sobre sambas de enredo

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Marcelo Moutinho, JB Online

RIO - Durante muito tempo, Carnaval no Rio foi sinônimo de samba de enredo. Os mais jovens podem estranhar, mas antes da monocórdica onda do axé music e de as marchinhas ressurgirem com força na esteira dos blocos, os hinos das escolas tocavam massivamente nas rádios, animavam foliões, serviam de trilha sonora para paixões tão coloridas e fugazes quanto uma serpentina no ar. E batiam recordes: entre os anos 70 e 80, o disco com os sambas costumava superar de 1 milhão de cópias vendidas.

Foi nessa época que o escritor Alberto Mussa e o historiador Luiz Antonio Simas começaram a se interessar mais fortemente pelo tema. Desde então, eles acompanharam disputas nas quadras, assistiram a muitos desfiles e, sobretudo, ouviram sambas. Foram, ao todo, 1.324 hinos que serviram de base para o recém-lançado Samba de enredo: história e arte. O livro supre uma lacuna da bibliografia sobre o Carnaval ao jogar luz na formação e nas modificações estéticas de um modelo que evolui a partir dos chamados sambas de terreiro (ou de quadra) e pouco a pouco define sua singularidade. O samba de enredo é o único gênero épico genuinamente brasileiro que nasceu e se desenvolveu espontaneamente, sem ter sofrido a mínima influência de qualquer outra modalidade épica, literária ou musical , observam os autores.

Primeira polêmica

Para definir o gênero, Mussa e Simas baseiam-se em dois critérios. O intrínseco, segundo o qual o samba de enredo é o poema musicado que alude, discorre ou ilustra o tema alegórico eleito pela escola . E o extrínseco, que se refere à sua estrutura métrica e melódica. É aí que se estabelece a primeira das polêmicas teses do livro.

Destoando da maioria dos pesquisadores, os autores contestam que O mundo do samba (Unidos da Tijuca, 1933) e Teste ao samba (Portela, 1939) sejam as composições inaugurais do gênero. Isso porque, embora se enquadrem no critério intrínseco ou seja, versem sobre o enredo têm estrutura musical similar à dos sambas de quadra. Antes de o formato se consolidar, houve oscilações. O samba de enredo passou por um processo de formação, para se diferenciar dos sambas de terreiro , afirmam Mussa e Simas, que classificam 61 anos de República (Império Serrano, 1951), de Silas de Oliveira, como o marco de uma tipicidade formal: A partir dele, passa a ser impossível confundir um samba de enredo com qualquer outro gênero de samba .

61 anos de República é um clássico samba-lençol: a letra de Silas cobre toda a história a ser narrada no desfile. Esse tipo de hino, dominante durante longo período, viria a ceder espaço a composições mais curtas nos anos 70, quando se inicia o processo de aceleração. Os enredos, então, se diversificam, deixando de privilegiar temas nacionais. Aparecem com mais evidência homenagens a artistas e personagens da literatura, além de assuntos como política.

Sim, porque a época de ouro do samba de enredo se deu quase toda sob o jugo da ditadura, como destacam os autores. E o livro recorda a política de boa vizinhança adotada por algumas escolas, que chegaria ao puxa-saquismo explícito com a Beija Flor e seus enredos laudatórios ao governo. Por outro lado, houve também enfrentamento. Em 1969, no Carnaval seguinte à decretação do AI-5, o Império desfilou com o provocativo Heróis da liberdade sob voos rasantes de um avião da Força Aérea.

Curiosamente, embora mais tarde tenham se tornado comuns, as referências à cultura afro-brasileira só figuram a partir da década de 50. Mussa e Simas revelam que o Salgueiro foi precursor ao abordar o assunto e localizam a primeira alusão explícita a um orixá: em 1966, quando Iemanjá foi mencionada no samba da São Clemente.

Um dos méritos dos autores, aliás, é não se limitar aos hinos das grandes agremiações. Hinos de escolas como Arrastão, Unidos de Bangu e Canários de Laranjeiras dividem as páginas com sambas de Portela, Mangueira, Império. O que reforça a relevância do estudo como documento histórico cujo único senão é a falta de um anexo identificando os compositores dos hinos citados, ao menos quando há tal possibilidade.

Na verdade, a questão da autoria é relativizada. No mundo do samba, o conceito de autoria nunca correspondeu precisamente ao de composição. Há casos em que os parceiros são incorporados ao samba por questões de disputa, por serem membros influentes na comunidade da escola, porque podem financiar , salientam os autores. Essa perspectiva não impede que dediquem um dos capítulos à biografia de compositores como Mano Décio da Viola, Didi, Djalma Sabiá, Martinho da Vila, Geraldo Babão, Hélio Turco e Dona Ivone Lara.

Mussa e Simas também não se furtam a responder por que os sambas de enredo deixaram de ostentar a popularidade de outrora. Situando no fim dos anos 80 o início do que chamam de encruzilhada , a dupla lista razões para a debilidade das safras recentes: a perda relativa do peso do quesito no julgamento, o tecnicismo paternalista dos jurados e, sobretudo, a rígida padronização estilística, que obedece tão-só à funcionalidade. Embora haja exceções, como os hinos da Imperatriz Leopoldinense, em 1996, ou do Império da Tijuca, em 2006, por mais belos que sejam, esses sambas não permanecem na memória popular , lamentam os autores, defendendo a redução do andamento em prol da melodia. Parece já haver algum movimento neste sentido , eles ressaltam, na esperança de que os hinos deixem de ficar a reboque do aparato visual e as agremiações possam, assim, vir novamente a justificar seu nome: escola de samba.