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'Os Moedeiros falsos', de André Gide, ganha nova edição

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José Antônio Cavalcanti*, Jornal do Brasil

RIO - O relançamento de Os moedeiros falsos, de André Gide (1869-1951) vem preencher um vazio de quase duas décadas de ausência dos livros do ganhador do Prêmio Nobel de 1947 entre nós. Juntamente com o texto assumido pelo próprio autor como seu único romance, a editora Estação Liberdade lançou o Diário dos Moedeiros falsos, até então inédito no Brasil.

Parece haver uma renovação do interesse pela obra do autor de A sinfonia pastoral. A mesma editora publicou uma nova tradução de Os subterrâneos do Vaticano, além de promover a primeira edição do conto Pombo-torcaz, escrito em 1907, porém só publicado em 2002. Na França, no ano passado, a coleção Pléiade colocou novamente em circulação toda a prosa ficcional de André Gide, reunida em dois grossos volumes, quase no mesmo momento em que a revista Magazine Litteraire lançava sobre o autor o rótulo de O mais moderno dos clássicos estampado na capa da edição de março.

O desejo, o homoerotismo sutil, a mise en abyme, o diário íntimo, o combate aos dogmas, a luta contra a falsificação, o confessionalismo, o caráter aberto da narrativa, o romance de formação, entre outros temas e recursos ficcionais dessa narrativa dividida em três partes, constroem um universo de apuradíssima técnica ficcional.

A trama complexa gira em torno do movimento das três personagens fundamentais: Bernard Profitendieu, Olivier Molinier e Édouard. Os primeiros, dois jovens intelectuais, e o último, um romancista que mantém um diário de anotações para a criação de um romance também denominado Os moedeiros falsos. O diário não duplica apenas o título, mas reproduz ainda personagens e situações da narrativa-matriz. Cruzam-se, assim, personagem, narrador e autor. Se quiserem, esse caderno contém a crítica de meu romance; ou melhor: do romance em geral. Imaginem o interesse que teria para nós semelhante caderno mantido por Dickens, ou Balzac; se tivéssemos o diário de A educação sentimental ou dos Irmãos Karamázov. A história da obra, de sua gestação! .

Bernard foge de casa ao descobrir que não era filho legítimo de seu pai. Após um longo périplo, acaba reconciliado com a família. Seu percurso alia o tema bíblico da volta do filho pródigo ao bildungsroman. Graças à mediação de Édouard pôde completar sua formação, tornar-se maduro e ser capaz de fazer escolhas. O tímido e inseguro Olivier vive fascinado por Édouard, seu tio, a quem não consegue revelar seus sentimentos. Move-se tensionado entre a influência do conde de Passavant, protótipo do mau romancista, e a do tio: Junto de Édouard, o que tinha de melhor em si se exaltava. Junto de Passavant, era o pior . É a sua tentativa de suicídio que o aproxima finalmente de Édouard. Este auxilia Olivier e Bernard a ingressar no assustador mundo adulto. O romance termina em aberto. Liberado do papel de protetor de seu ex-secretário, Édouard parece encontrar um novo aprendiz, o irmão de Bernard, como sugere a frase final do romance: Estou bastante curioso para conhecer Caloub .

Na visão homoerótica gideana, falta aos jovens fragilizados na luta pela existência a experiência de um homem mais velho, capaz de orientá-los, pelo menos até que consigam alcançar um ponto em que possam se defender e fazer escolhas. Concepção expressa com nitidez na parte final de Córidon, livro fundamental à compreensão do homoerotismo e marco na luta contra o preconceito homofóbico: Se alguém mais velho se enamora dele [do adolescente], (...) julgo que nada se lhe pode apresentar de melhor, de preferível que um amante . Trata-se da velha concepção pedagógica de pederastia tão cara aos gregos, embora hoje as reflexões de Gide possam provocar uma leitura permeada de incompreensões, se lidas com olhos censores, sensíveis às conotações de pedofilia e infensos à filiação helênica da afirmação homossexual de Gide.

A crítica gideana ao darwnismo social pode ser observada na brutalização sofrida pelos mais fracos, com os quais há manifesta solidariedade e identificação. Tanto em O imoralista quanto em Os moedeiros falsos, há o domínio dos mais fortes sobre os mais fracos, sempre mais numerosos e merecedores do olhar carinhoso do autor. É Marceline, a infeliz personagem de O imoralista, martirizada até a morte por Michel, quem melhor exprime essa denúncia ao dizer-lhe: Tua moral suprime os fracos . Esta moral, em Os moedeiros falsos, rege o comportamento de Victor Strouvilhou, do conde de Passavant e, de modo mais agudo, provoca o suicídio de Boris. Strouvilhou é um jovem transgressor, responsável pelo golpe das moedas falsas e que conta com alguns seguidores para a execução de seus planos; Passavant usa a sua força e o seu prestígio para corromper os jovens que dele se aproximam; Boris é a trágica vítima de um rito de iniciação de uma gangue juvenil.

Do ponto de vista da técnica romanesca, André Gide, ao promover o cruzamento e espelhamento de textos que remetem a outros textos no interior da mesma obra, ajudou a formular um processo de largo emprego na contemporaneidade: a mise en abyme. Não bastasse isso, a publicação do Diário dos Moedeiros Falsos, torna a questão mais complexa, já que duplica personagens e temas, inscreve outras possibilidades de leitura, intervém sobre o romance ao mostrar as suas entranhas.

Se Gide não é o autor da expressão, é o responsável pela criação do conceito, como pode ser comprovado pela leitura de seu Journal, onde faz uma analogia entre a sua proposição romanesca e o procedimento de heráldica que consiste em localizar no brasão, um segundo [brasão], menor 'em abismo', no seu centro . Segundo Lucien Dällenbach, em Le récit spéculaire, mise en abyme pode ser definida como todo espelho interno que reflete o conjunto da narrativa por reduplicação simples, repetida ou complexa . O mesmo autor atribui a autoria da expressão a Claude Edmonde Magny, em L'âge du roman américain, de 1950. A importância de seu emprego por Gide se dá pelo fato de traduzir a sua descrença sobre a possibilidade de existir uma verdade a ser aprisionada pela escrita. Qualquer que seja o texto, aos olhos do autor, será sempre em hiato, em descompasso, um campo de interrogações mediante o qual a realidade é deslocada e a verdade reduz-se a um ponto de vista, ao infinito movimento de busca e reflexão. Gide não caiu no logro do mimetismo. Cedo percebeu que a linguagem é conquista, trabalho intenso e constante, fato comprovado pelas inúmeras correções que fez ao texto.

O Diário dos Moedeiros falsos reúne dois cadernos de anotações sobre o processo de criação do romance, aos quais foram acrescentadas notícias de jornais (sobre o episódio das moedas falsas e a respeito do suicídio de um jovem secundarista), cartas e dois pequenos textos: Páginas do diário de Lafcádio (o protagonista de Os subterrâneos do Vaticano ainda estava muito vivo na imaginação do autor) e Identificação do demônio , uma reflexão sobre um dos motivos recorrentes em Gide: a influência diabólica sobre o homem (no romance a sua ação incide sobre Vincent Molinier).

Apresenta observações, algumas duplicadas no diário de Édouard, sobre a sua concepção do romance: Purgar o romance de todos os elementos que não pertencem especificamente ao romance . Veja-se esta reflexão machadiana: E mais ainda aquilo que não é nem de amanhã nem de ontem, mas que em qualquer tempo se possa dizer: hoje . Ou a melhor síntese da proposta gideana: Tanto pior para o leitor preguiçoso: quero outros. Inquietar, essa é minha função. O público prefere sempre que o tranquilizem. Há alguns que têm isso como profissão. Há até demais .

No romance, o episódio das moedas falsas serve para o autor, a partir da situação concreta dos jovens delinquentes, construir uma metáfora das relações humanas como forma de perversão da possibilidade de compreensão do outro e de si mesmo. A falsificação cunha desencontros na linguagem, na família, no amor e em todos os níveis da existência. Linhagem de busca e inquietação, a prosa gideana guarda sempre uma dimensão moral próxima da formulação de Pascal: A verdadeira moral zomba da moral . O autor, criticado pela direita e pela esquerda, engajou-se na sinceridade como marca de sua atividade intelectual, daí a mobilidade, o caráter proteico de seu percurso. Não se fixar em um ponto significa que nada pode ser encontrado na escrita a não ser o seu próprio movimento, do qual não advém nenhuma verdade, nenhuma certeza. Ideia implícita na conhecida frase do autor: Crê nos que buscam a verdade; duvida dos que a encontraram .

André Gide combateu os dogmas, o efeito corrosivo de tudo aquilo que torna as ações humanas gestos enrijecidos pelo peso de induções exteriores, preconceitos, tradições mortas, automatismo. A liberdade exige um esforço extraordinário, já percebido por Michel, protagonista de O imoralista: Saber libertar-se não é nada; o difícil é saber ser livre . Gide soube conquistar e preservar a sua liberdade, ainda que ao preço de incompreensões de toda natureza.

* Poeta e doutorando em ciência da literatura na UFRJ.