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Romance de Sándor Márai reflete sobre a condição humana

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José Antônio Cavalcanti, Jornal do Brasil

RIO - A obra de Sándor Márai, aos poucos, vem sendo divulgada no Brasil, pondo fim a um longo período de silenciamento da voz desse extraordinário romancista húngaro que gozou de enorme prestígio em seu país durante a primeira metade do século passado. Após a Segunda Guerra, violentamente criticado por Georg Lukács e em linha de colisão com o regime comunista, o autor não conseguiu mais ser editado em sua terra natal, razão pela qual, em 1948, dirigiu-se à Itália e, posteriormente, emigrou para os Estados Unidos. No exílio, continuou a produzir sua obra em húngaro, passando a habitar um limbo criado pelo isolamento linguístico e pela excomunhão política. Em 1989, já cego de um olho, após perder a mulher, o filho adotivo e o irmão, suicidou-se com um tiro na cabeça. Ironia cruel: pouco depois da morte, com o fim da ocupação russa, sua obra foi redescoberta. Sándor Márai pôde, finalmente, ser reconhecido como um dos grandes ficcionistas do século 20.

Dele, a Companhia das Letras, responsável pela publicação dos romances As brasas, O legado de Eszter, Veredicto em Canudos, Divórcio em Buda, Rebeldes, Confissões de um burguês e De verdade, lança agora o pequeno volume intitulado Libertação, escrito durante o mês de agosto de 1945, ainda sob o calor da guerra, porém só publicado após a morte do autor.

Em meio a uma Budapeste cercada pelas tropas soviéticas e devastada por incessantes bombardeios, Erzsébet, a protagonista, procura um abrigo para proteger o pai, famoso astrônomo e matemático conhecido por suas posições antifascistas. O desmoronamento do totalitarismo nazista intensifica o clima de perseguição e eliminação de inimigos de todas as matizes, de judeus a simples liberais. Com a cidade ocupada pelos alemães, tanto a Gestapo quanto os fascistas húngaros ansiavam por colocar as mãos sobre o renomado cientista.

Erzsébet, movida pelo desespero, recorre a uma personagem denominada apenas como o adventista a fim de ocultar o pai. Depois de 10 meses de fuga, o cientista fica emparedado em um recinto semelhante a um túmulo.

Com a ampliação dos ataques aéreos, Erzsébet acaba buscando abrigo no porão do prédio onde morava, esconderijo subterrâneo em que se abrigam 140 pessoas, oriundas de todas as classes sociais: ... ali vivia toda espécie de gente, eminências, ricos, estudados, pequeno-burgueses, um alfaiate, um bombeiro, um professor universitário que Erzsébet conhecia de algum lugar, um comerciante que enriquecera no passado recente, quando os decretos e a violência fascista exterminaram os comerciantes judeus, um advogado, uma dançarina que negociava sulfato de cobre, todo tipo de gente . Forma-se, assim, um pequeno painel da Hungria antes da guerra, alojado em condições desumanas, para o qual a única medida de tempo era estabelecida pelo cerco das tropas soviéticas. O porão representa a perda de visibilidade da cidade, cuja presença a memória reproduz com o auxílio das explosões de bombas e o incessante estampido de armas russas, alemãs ou em mãos dos bandos fascistas.

A cidade subterrânea reinscreve as relações humanas sob o domínio da sobrevivência entre grandeza e sordidez. Se a solidariedade persiste, inscrita no gesto do adventista, o que prevalece é o desmantelamento dos laços humanos, processo pontuado pelo narrador: Como se uma sociedade, no momento do perigo derradeiro perdesse a dignidade humana restante: traía-se em massa, escreviam-se cartas anônimas, ou assinadas com nome e sobrenome, corria-se para entregar o infeliz que nas voltas finais da corrida ensandecida se espremia asfixiado num canto das profundezas dos abrigos . Dentro desse clima, não causa estranheza o gesto infame do zelador do abrigo ao denunciar à milícia fascista um protético judeu, nem a assunção tardia de uma culpa coletiva, fruto de cinismo e inércia; as duas atitudes são índices de que todos, inimigos e refugiados, já haviam passado do ponto .

No ambiente sufocante, Budapeste é uma cidade sem rosto. Nome, individualidade, tudo se desfizera no porão, como se todos fossem invisíveis no redemoinho do baile de máscaras subterrâneos! . Reconhecidos por funções ou características físicas, os habitantes têm os nomes suprimidos. Mesmo Erzsébet usa nome falso, por estranha coincidência igual ao verdadeiro. Por trás da perda de identidade pessoal, percebe-se a Hungria como um rosto que jamais será visto de novo, não do jeito como o viu Sándor Márai, atento e nostálgico observador de uma existência burguesa em estado crepuscular.

Vozes anônimas por vezes dirigem-se à protagonista. A vizinha da direita, uma judia muda e invisível durante 18 dias, começa a contar-lhe a dolorosa experiência vivida em um campo de concentração, cujo horror máximo ela associa à figura de um médico, cuja mão levantada, movida por profundo conhecimento científico, regia a morte e a vida dos prisioneiros. Na onipotência do gesto, um símbolo do planejamento racional do método de extermínio nazista.

Já o silencioso vizinho da esquerda, vitimado por uma paralisia que vai além da dimensão física, só readquire a voz quando da retirada dos refugiados, transferidos para outro abrigo pelos alemães. No momento em que todos são removidos para novo abrigo, convence Erzsébet a permanecer no porão. Entre cético e paternal, sua imagem desenha a impotência de todo um modo de vida burguês em dissolução. Isso, mais do que a necessidade de sobrevivência, apaga qualquer forma de solidariedade diante do drama de Erzsébet, indefesa frente ao soldado russo que a viola. O destino da heroína, num jogo montado por uma aliança entre violência e ironia, manifesta uma metáfora da Hungria; ao não cumprir a promessa guardada em seu nome, libertação transforma-se em corpo, alma e país privados de liberdade.

O pequeno romance, com seu ritmo ofegante entremeado de tensas calmarias, produz, simultaneamente, um gosto amargo e uma imperiosa necessidade de pensar a condição humana. Um candente ceticismo evita escamotear o horror e a crueldade com os farrapos da esperança. Erzsébet, Budapeste e a Hungria permanecerão intocáveis em seus despojos textuais, testemunho e ficção do absurdo humano.