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Em livro, o tcheco Karel Capek parodia episódios míticos

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Alvaro Costa e Silva, Jornal do Brasil

RIO - O Natal é triste? Se é, ao menos neste, há uma razão para alegria: as Histórias apócrifas escritas pelo autor tcheco Karel Capek. Lançado pela Editora 34, é um dos principais livros de 2009 justamente por questionar o senso comum, os preconceitos e o totalitarismo de afirmações como o Natal é triste . No melhor estilo das esquetes do grupo inglês Monthy Python ou de Woody Allen, ou do americano S. J. Perelmam, ou do catalão Eduardo Mendoza o evangelho segundo Capek pode render boas gargalhadas. Como teria sido o tribunal que condenou Prometeu por roubar o fogo dos deuses? Que resmungos trocaria um velho casal da Idade da Pedra lamentando a decadência das novas gerações e a falta de perspectiva da humanidade? Quais teriam sido os comentários maldosos que corriam entre os soldados gregos no cerco de Troia? O que um esforçado padeiro de Jerusalém diria sobre Cristo e seu milagre dos pães? Por que Lázaro sofre com inestancáveis acessos de tosse? Sabe qual foi a última estripulia de Maria Madalena?

Karel Capek é o principal escritor tcheco da primeira metade do século 20. E Kafka? você vai perguntar. Embora tenha nascido em Praga e nela se inspirado, Kafka escreveu em alemão (assim com o tcheco-austríaco Rainer Maria Rilke). Milan Kundera (que talvez seja mais francês) e Václav Havel (mais identificado com a Revolução de Veludo) surgiram bem depois. O poeta Jaroslav Seifert, Prêmio Nobel em 1984, continua sendo mais um dos mistérios da Academia Sueca.

A obra de Karel Capek (segundo Ruy Castro, que sabe tudo da língua tcheca, pronuncia-se kárel tchá-pek) tem mais pontos de contato com a de Jaroslav Hasek, um escritor tipo vagabundo, autor de O bom soldado Svejk, que morreu quando parou de beber. O que unia os dois (e, de certa forma, também Kafka) era o humor trágico.

Mas Capek nascido em 1890 na Boemia, então parte do Império Austro-Húngaro ficou conhecido no mundo inteiro por outro motivo: ter sido o inventor da palavra robot. A história é mais ou menos conhecida: em 1920, foi levada à cena a peça R.U.R (Russum Universal Robots) (robôs universais de Rossum) em que aparece pela primeira vez o neologismo futurista (de robota, trabalho), na verdade criado pelo irmão de Karel, Josef.

A peça conta a história de uma civilização tão avançada que prescindia completamente do esforço humano, físico ou mental. O trabalho era feito por um exército de autômatos que, como sói acontecer, se revolta e resolve exterminar a raça humana.

OK, você já viu esse filme. E fica fácil de estender por que Capek, com suas sombrias e distópicas profecias, tornou-se uma referência na chamada literatura de antecipação o melhor subgênero da ficção científica que conta com seguidores do porte de Aldous Huxley, George Orwell, Philip K. Dick, Kurt Vonnegut, J. G. Ballard.

Hoje, quando o fascínio pelos robôs decaiu, distópico mesmo é o nome de Karel Capek ter virado marca de produtos latinhas de chá, xícaras, material de papelaria ilustrados com desenhos fofos e retrôs. Onde mais? No Japão, lógico.

Questões morais

Mesmo tendo dado pano para muita manga e frescura, R.U.Rão é o melhor de Karel Capek. Além de livros de sátira tanto ao comunismo messiânico quanto ao consumismo capitalista, na década de 30 publicou romances Hordural, Povetron e Obycejny zivot que formam uma trilogia sobre questões morais do homem contemporâneo. Com a crescente ameaça da Alemanha nazista sobre a Tchecoslováquia, suas obras passam a ser mais explícitas na defesa da democracia. É dessa época os dramas Bilá nemoc e Matka, e aquela que é considerada sua obra-prima, Válka s mloky (A guerra das salamandras), de 1936.

Dez anos antes, um explorador havia descoberto na Ilha de Comodo uma raça estranha de lagartos. É daí que Capek parte, pondo em destaque um velho capitão, Van Toch, que iniciou com certas salamandras de Sumatra um próspero comércio: em troca de pérolas colhidas por elas, fornece-lhes facas para que se defendam dos tubarões. Já viu, não é? Na hora da guerra, some parte da Europa, China e Rússia; o Brasil afunda inteiro. Mas não é só a história: é a maneira de narrá-la: recheio de tratados biológicos, recortes de jornais, notas de pé de página que remetem a livros inexistentes e ao próprio A guerra das salamandras. A última edição em português do livro, dos anos 80, está fora de catálogo.

Ainda bem que temos esta de agora das Histórias apócrifas. Nos 29 textos que compõem a coletânea - elaborados no período entre as duas guerras mundiais e publicados no jornal Lidové Noviny (O Jornal do Povo) o escritor vai da paródia burguesa à parábola alegórica. Difícil é destacar qualquer um deles, ou um dos episódios históricos, míticos e literários que são satirizados.

O certo é que ninguém definiu a Guerra de Troia ou Helena nos termos que fez o soldado raso Tersites: É uma rameira de marca. Eu não daria por ela nem um prato de feijão. Sabeis, rapazes, que é que eu desejo para o tonto do Menelau? Que ganhemos essa guerra de uma vez para que ele receba a mulher de volta. A beleza de Helena não passa de lenda, impostura e um pouco de pó de arroz. (...) Nós, gregos, lutamos, primeiro, para que a raposa velha do Agamêmnon possa encher as burras com nosso butim; segundo, para que o janotinha do Aquiles possa saciar sua imensa sede de glória; terceiro, para que o vigarista do Odisseu possa nos escorchar fornecendo o armamento; por fim, lutamos para que um bardo vulgar e corrupto, o tal de Homero, ou lá como se chame, possa glorificar, por uns trocados sujos, os maiores traidores da nação grega .

Karel Capek morreu em 1938. Em um 25 de dezembro. Aquele, sim, foi um Natal triste.