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Revelações da caixa preta do Doi-Codi em novo documentário

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Daniel Schenker*, Jornal do Brasil

BRASÍLIA - Vozes da clandestinidade falaram alto na segunda noite de competição do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro. Em Perdão, Mister Fiel, documentário de Jorge Oliveira, o espectador assiste ao resgate da tragédia do operário Manoel Fiel Filho, morto nos porões do Doi-Codi em 1976, pouco tempo depois de um assassinato famoso, o do jornalista Vladimir Herzog. Antes do longa foram exibidos dois curtas: Bailão, de Marcelo Caetano, centrado em depoimentos que destacam como a discriminação fez com que muitos homossexuais ficassem relegados, em décadas anteriores, a um certo circuito marginal; e Água viva, de Raul Maciel, sobre o conturbado rito de passagem da adolescência para a vida adulta atravessado por uma menina que não consegue decodificar aquilo que sente.

Em Perdão, Mister Fiel, Jorge Oliveira, em parceria com seu filho, Pedro Zoca (codiretor), reuniu depoimentos de autoridades políticas, escritores, jornalistas e familiares de Manoel Fiel Filho (a mulher, Thereza, presente à projeção) com o intuito não só de resgatar a trajetória do operário como de abordar o início da transição do regime ditatorial para a fase de abertura política. Na sessão da última quinta-feira, no Cine Brasília, parte do público vaiou os ex-presidentes Fernando Henrique Cardoso e, principalmente, José Sarney e o ex-ministro Jarbas Passarinho. Já o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, também entrevistado para o filme, não foi alvo do repúdio da plateia. Apesar dos políticos ilustres, quem chamou atenção foi Marival Chaves, ex-agente do Doi-Codi, que fez revelações surpreendentes e detalhadas sobre as torturas cometidas durante os anos de chumbo.

Marival não caiu de paraquedas. Foi uma conquista minha como jornalista. O filme já estava praticamente pronto, mas eu sentia falta de alguém falando de dentro sobre a ditadura disse Jorge Oliveira.

Diante do surgimento de Marival, a produtora Ana Maria Rocha se viu obrigada a reestruturar Perdão, Mister Fiel. Afinal, as declarações dos entrevistados são entrelaçadas, como se cada um desse continuidade à história que o outro iniciou.

Marival prestou um depoimento estarrecedor de duas horas. Fiquei assustada quando me deparei com a gravidade de suas revelações. Ele foi muito corajoso. Acho que vivia assombrado por dilemas de consciência durante todos esses anos. Tanto que diz no filme que já saiu do exército pensando em vir a público destacou Ana Maria.

Também suscitou bastante curiosidade a gravação (pertencente à Fundação Getulio Vargas) contendo uma fala em off do ex-presidente Ernesto Geisel ordenando a exoneração do general Ednardo d'Ávila Mello após os assassinatos de Vladimir Herzog e Manoel Fiel Filho.

Inicialmente, eu procurava uma declaração em que Geisel defendesse a prática da tortura contou Jorge Oliveira.

Mesmo com as interessantes questões que vêm à tona durante a projeção, Perdão, Mister Fiel é uma realização problemática. Os entrevistados são enquadrados de frente para a câmera em cenas com fundo preto que acabam gerando uma monotonia visual. O cineasta entrelaça a parte documental com trechos de encenação, nos quais procura reconstituir através de dramatizações a captura de Manoel Fiel Filho e as torturas que sofreu no Doi-Codi. Mas os atores foram levados a incorrer num obsoleto registro melodramático. E as sequências são marcadas por soluções estéticas de gosto um tanto duvidoso, a exemplo da inclusão da cor em determinados elementos das imagens em preto-e-branco. Questionado sobre a parte ficcional do filme, Jorge Oliveira reiterou a validade de sua escolha.

Acho documentário chato. Não gosto de ficar no lero-lero. Não por acaso, sempre fiz docudramas. Em relação ao fundo preto, quis prestar homenagem aos mortos e desaparecidos explicou Jorge Oliveira.

Pedro Zoca procurou minimizar a contundência da declaração de Jorge.

Meu pai diz que não gosta de documentário para provocar. Na verdade, ele adora dramaturgia e a dramatização é um meio de fazer com que aqueles que de fato não apreciam documentários se envolvam com o filme justificou.

Quando Perdão, Mister Fiel começou, o espectador já tinha assistido a flagrantes de outros sobreviventes: os frequentadores do Bailão, que enfrentaram o preconceito à homossexualidade em dias bem menos tolerantes que os atuais.

Bailão é um filme sobre uma geração que sobreviveu ao conservadorismo sintetizou o diretor Marcelo Caetano, que foi assistente de direção de Kiko Goifman no polêmico FilmeFobia (2008), vencedor da edição passada do Festival de Brasília.

Mais intimista, Água viva, de Raul Maciel, mostra a dificuldade de uma adolescente interpretada por Mariah Teixeira, que ganhou o Candango de melhor atriz por Baixio das bestas (2007), de Claudio Assis em lidar com a força de seus desejos.

A personagem vive uma gravidez psicológica durante o seu conturbado processo de amadurecimento. A água viva representa a perplexidade, o espanto diante de tudo o que não pode ser explicado declarou Raul, que assumiu influência da cineasta Lucrecia Martel.

* O repórter viajou a convite da organização do festival