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Após 13 anos Carlito Azevedo publica 'Monodrama'

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Juliana Krapp, Jornal do Brasil

RIO - Não fossem as espinhas, o poeta Carlito Azevedo já teria pendurado as chuteiras. A empreitada dos versos seria substituída pelo expediente atrás do balcão, numa papelaria do Largo do Machado, seu atual sonho de consumo. Nunca mais passantes, cimitarras suicidas e noites gris. No lugar dos blocos da marca União que carrega no bolso, preenchidos com letra labiríntica durante suas caminhadas pelo Centro do Rio (o roteiro invariavelmente envolve uma parada na Leiteria Mineira, onde é freguês do milkshake de R$ 11), exibiria à clientela cadernos de brancura imaculada, tinindo de novos.

Mas, para o bem da poesia brasileira, há a metáfora clariceana das espinhas, erupções que atestam, tal e qual bandeiras de pura impertinência, o caráter fisiológico do fazer literário. É dela que se vale Carlito para justificar seu retorno às livrarias com Monodrama (7Letras, 156 páginas, R$ 37), depois de 13 anos sem publicar um livro de inéditos. (E, a esta altura, lembremos que, num de seus chistes mais famosos, o poeta já recorrera à galáxia de hormônios e camadas epidérmicas, quando, em plena Flip-2006, revelou que começou a fazer versos para conquistar namoradas ; e que, se continuou, foi para mantê-las).

Mais de uma década depois de Sob a noite física (Sublunar, de 2001, é uma antologia que reúne seus livros anteriores), a obra inédita que agora vem a lume representa o contato do poeta com seu próprio desencanto. E, em vez de selar o término, expõe a longa crise que tomou de assalto sua produção poética nos últimos anos e que culminou com o desaparecimento, depois de 10 anos de circulação, da revista Inimigo Rumor, criada e editada por Carlito.

Que o leitor, porém, não espere lamúrias deste Monodrama, livro de estilhaços luminosos, povoado por terroristas, cheiro de hotéis baratos e desconcertantes meninas estrangeiras. Livro que, para roubar a expressão de um de seus poemas, é um sopapo da claridade : arrebatador, equipado com todos os truques desencantados que fazem da poesia o melhor possivelmente o mais insuspeitado jogo de espionagem de nossos dias. Talvez por isso, a imagem que ilustra a divisão entre os capítulos seja tão apropriada: num protesto na França, o velho lema grêve générale (greve geral) perde o g , e vira revê générale (sonho geral).

Numa entrevista ao jornal português Público, você disse que andou um pouco desconfiado do gênero poesia. No que consiste essa desconfiança?

Uma crise pessoal me levou, e não só em relação à poesia, a viver aquilo que alguns psicanalistas chamam de o momento do des . Que é quando o que era confiança vira desconfiança, o que era equilíbrio vira desequilíbrio, o que era ordem vira desordem. Nunca fui o tipo de escritor que se sente confortável com a literatura, mas meus primeiros livros tinham sido tão bem recebidos, que eu me acreditava capaz de manter com o mundo uma troca mágica e ilusória: ele me forneceria os elementos, as paisagens, as passantes, e eu os depuraria em poemas, e assim seguiria em frente uma vida tranquila e idiota, sem inquietações nem auto-questionamento. Mas o mundo, a vida, tudo me mostrou a falsidade desse pacto me atingindo direto no coração, mostrando sua face brutal e me desafiando: Escreve agora . Foi o que quis mostrar quando pus a epígrafe de Georg Trakl Esgotou-se a fonte de ouro dos dias , no Sob a noite física, de 1996. Já percebia que algo tinha se quebrado, só não tinha a dimensão do estrago. Muito tempo passou sem publicar um livro inédito. Para mim, abrir uma papelaria seria melhor do que publicar um livro de poemas.

Vender cadernos é melhor do que fazer versos?

Talvez porque eles não tenham nada escrito.

Treze anos sem publicar livro é muito tempo, não?

Com tal desconfiança, o insólito é que alguém ainda chegue a publicar um livro novo. Mas acontece que qualquer um pode deixar de escrever, mas ninguém pode deixar de sentir, de ter sentimentos. Além disso, eu, secretamente, tentei de várias maneiras criar uma margem para o exercício literário. Fundei a Inimigo Rumor , li os clássicos como se deles dependesse a minha salvação, passei a ministrar oficinas de poesia onde lia com os alunos os poetas que mais mexiam comigo. Abandonar a literatura, como fazem alguns, me parecia uma falsa saída. O mundo me oferece tão poucas coisas que eu ame de verdade, como ia fugir daquilo que sempre me pareceu a mais linda invenção humana? Se depois de tudo ainda consegui preparar um livro novo é porque fui buscar no veneno o antídoto, e porque escrever é mesmo como arrancar espinhas. Um dia você acorda e elas estão ali, como dizia a Clarice, então é preciso arrancar. A gente espreme e, ploft, sai a espinha, ou o poema. Não é mais tão glamouroso quanto o antigo pacto poético com o mundo que se abriria como uma flor ao toque do poeta, é até obscena essa nova perspectiva da criação. Quem pode se orgulhar de passar o tempo todo espremendo espinhas publicamente?

Hoje sua poética é outra?

Como insinuei anteriormente, já fui um bobo que acreditava no poema como essência. Hoje o arrasto o máximo possível para junto da prosa, onde pelo menos não vejo a linguagem andar com aquele narizinho empinado de quem trava relações privilegiadas com o oculto e o mistério. Como é ridículo agir assim no chiqueiro cotidiano, espremidos entre o favelizado comércio criminal e o fascismo assassino dos choques de ordem. E olha que eu vim de uma ideologia estética que considerava a linguagem poética em oposição à linguagem cotidiana, que seria automatizada e não-criativa , mera moeda de troca. Hoje até os formalistas russos entenderiam que a linguagem poética é que está automatizada na sua caixinha de sonoridades, enquanto a linguagem cotidiana exerce a criatividade possível e impossível de quem enfrenta o contato furioso da existência. Não escrevo prosa, o que no Brasil é, hoje, com honrosas exceções, sinônimo de falta de imaginação, mas minha poesia segue menos uma poética que uma prosaística.

É curioso porque você diz que um dos atrativos do poema é a sua mancha gráfica, o desenho dos versos na página.

Mas leve em conta que escrevi este livro contra mim, contra meus hábitos, contra meus vícios. As cassandras interiores vivem me repetindo que desse modo perderei meus antigos admiradores, sem com isso conquistar nenhum outro em troca. Mas também isso já pouco importa. Aliás, apesar de meus livros anteriores chegarem a ter quatro reimpressões, fiz questão de pedir ao Jorge Viveiros de Castro, editor da 7Letras, que esgotada a primeira tiragem deste livro, ele não fosse mais reimpresso. Esse escrever contra mim é ainda a tentativa de uma margem para o exercício literário de que falei, da busca de uma possibilidade de ainda escrever quando tudo o que era encantamento virou desencanto, e o desencanto um contorno espiritual.

Mas será que a impossibilidade da reprodução não vai fazer com que o Monodrama, longe de se esgotar, acabe virando um livro-fetiche?

Estou bem longe disso, e a tiragem dele é enorme para poesia. Mas o que importa no destino de um livro não tem relação com o fato de ele virar um livro-fetiche ou um livro-encalhe, nem com o fato de ele ser muito ou pouco reeditado, muito ou pouco falado. O que importa no destino de um livro é ele encontrar os leitores que o reinventarão.

Seus poemas também estão mais longos.

Os poemas estão mais narrativos e extensos, na contramão da linguagem twitterizada, com sua regra dos 140 toques. O que ocorre é que as coisas aparentemente mais disparatadas começaram a apresentar, para mim, nexos inesperados. Assim, a tensão erótica dos hotéis baratos, a repressão policial, as turbulências econômicas, o tráfico de imigrantes e o terrorismo, por exemplo, pareciam se espelhar, pareciam fazer parte do mesmo poema contemporâneo. Daí os poemas longos, mas também entrecortados, cheios de planos quase antagônicos, mudanças bruscas de cena, o que quebra um pouco a linearidade do extenso.

Falando na tensão erótica dos hotéis baratos, e lembrando as espinhas obscenas aí de cima, este é o seu livro mais desbocado?

Uma das cenas que prefiro no livro é a ereção do segurança do banco ao ver pela câmera, em meio a uma manifestação, a menina de seios grandes, olhos de guepardo, leitora de Rilke. Aquilo é quase um cine-pornô.

Imigrantes e estrangeiros aparecem no Monodrama, um mergulho no cruzamento de nacionalidades e referências. Você cria um universo peculiar, que abarca manifs, menina coreana, traduções do russo, Berkeley, Barthes e Habib's. Que atmosfera é essa? Tem a ver com o rêve générale?

Mais que um sonho geral, parece um pesadelo geral. A imagem quase cotidiana daqueles novos navios negreiros chegando com milhares de refugiados da África a uma Europa toda fascista que arma barreiras contra sua entrada é forte demais. Como se diz, todo paraíso termina numa cerca de arame farpado. Sem falar na sorte clandestina de tantas mulheres que emigram do Leste Europeu para uma vida absurda em Portugal, Itália e Espanha. Um dos detonadores deste livro foi uma menina coreana que vi se picando no Aterro numa noite de apagão não tão desastroso quanto este último (por isso o poema dedicado a ela começa com o verso Foi quando a luz voltou e termina falando em novos dias sem luz alguma além dos faróis da avenida). Era o mesmo drama, com outras tonalidades, ali na minha frente. Nada que eu tenha visto me pareceu jamais tão sem futuro quanto aquilo. A partir daquilo resolvi sair escrevendo as ruínas desse pesadelo, que culminou, para mim, na destruição física e mental de minha mãe, Hilda, narrada no poema H. , ponto em que encerro o livro e, se eu tiver ainda alguma dignidade, meu dramalhão particular com a poesia.

Quando você diz dramalhão particular com a poesia está se referindo ao pesadelo que acaba de citar, ou está simplesmente afirmando que pensa em parar de escrever?

A possibilidade de parar de escrever é algo que sempre temos que ter à mão. Dizem que a própria possibilidade do suicídio já salvou a vida de muita gente, que sabe que dispõe desse ato extremo. Mas o que quero dizer é que desejo escrever um livro de poemas-piada. O chileno Nicanor Parra, que está com 93 anos e muito vivo, é hoje um dos meus deuses poéticos.

Nenhum poema/ é mais difícil/ do que sua época , diz um trecho do Tubo , um dos textos do livro. Como nossa época difícil? marca o Monodrama?

Há tempos sabemos que em certos autores de ficção-científica vamos encontrar a melhor e mais devastadora reflexão sobre nossa época. Na sua última entrevista, Stanislaw Lem, autor do romance Solaris, se dizia decepcionado com o rumo tomado pelo avanço tecnológico. Ele exemplificou dizendo que se digitarmos em um buscador a palavra felicidade , teremos, em um zeptossegundo, cinco milhões de textos sobre a felicidade. Mas em quê isso nos aproxima um milímetro que seja da felicidade? , pergunta ele. Talvez só nos deixe 5 milhões de textos mais distante dela. O grande engodo da época é afirmar que encontrou inúmeras soluções simples e possíveis para os nossos problemas tão complexos. É claro que se você é uma dessas pessoas cujo grande tormento espiritual era o fato de um telefone não bater fotos nem tocar música, a vida moderna de fato foi feita para a sua felicidade. O meu pessimismo, refletido no Monodrama, vem da constatação de que as muitas possibilidades abertas pela tecnologia só existem para tornar mais difícil o encontro com aquela única que seria de fato importante para sua realização pessoal. Travamos uma guerra contra as quantidades absurdas, com aqueles números cheios de zeros que transformam tudo numa abstração.

A poesia está hoje menos identificável?

Como as leis do mercado rezam que para melhor gravar seu nome na memória dos consumidores de livros, o escritor deve se destacar em alguma outra área, seja a magia branca, a prática do boxe ou a criação de galinhas, talvez eu devesse também acrescentar ao meu alguma dessas ilusões tão reconfortantes. Só que não estou atrás de ilusões, nem de conforto, nem de consumidores de livros, leitores já me bastam. Os jovens têm muitas razões para tentar escapar dessa piada, ou ao menos dissipá-la entre outras mil. Não os condeno. Quem quer ser o esquisitão?

É verdade que a Inimigo Rumor encerrou os trabalhos?

Os blogues acabaram com as revistas literárias. Restam duas ou três, de que falamos como se fossem botos cor-de-rosa, ararinhas azuis, animais em extinção. Você lança o número um e na semana seguinte já é uma raridade. Pior para a vida. Ainda bem que em dezembro teremos mais um número da Modo de usar & co. As pessoas que estão ao redor dessa revista, editando ou participando, têm uma alegria e uma potência que são das poucas coisas que me animam atualmente.

Você não respondeu.

Acho que não digo nenhuma novidade se afirmar que vivemos um momento de desencanto político, não é? As pessoas não se sentem mais animadas, por descrença, a uma ação política. Pois bem, assim é meu desencanto poético. Mas tal como as pessoas, por uma necessidade natural, acabam criando, fora dos moldes tradicionais, formas mais contemporâneas de ação política, como as passeatas GLBT, estou sempre tentando criar uma margem para a ação poética. No fundo, é preciso reinventar a Inimigo Rumor.