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Romance de Natália Nami tematiza a angústia coletiva moderna

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Ieda Magri*, Jornal do Brasil

RIO DE JANEIRO - James Joyce perguntou certa vez ao médico que tratava de sua filha esquizofrênica, Lucia, se havia semelhança entre os dois. 'A semelhança é inequívoca, mas ali onde ela recebe ajuda da medicina, você escreve', foi a resposta do médico.

Verdade ou apenas mais uma história entre tantas que cercam a trajetória do autor de Ulisses, é uma chave com a qual se pode ler O contorno do sol, de Natália Nami. Em primeira pessoa, o romance narra, sem excessos, a dança de Flávia com sua loucura, nascida da culpa por uma frase dita no dia da trágica perda dos pais num acidente de carro. Uma entrega e um drible que se fecham com a impressão de que a escrita do romance pela personagem seria a saída encontrada para começar a luta contra a doença que se insinua pela solidão, pela consciência do abismo, pela ausência de desejos, pela passividade mas também por uma forte náusea e um desejo sempre reprimido de gritar.

A resposta da personagem às situações de desconforto com o outro surge numa atmosfera de sonho ou pesadelo quando o grito é imprescindível mas não há voz: 'O ônibus. Iria passar e não me levaria com ele, eu sabia. Eu tinha certeza. Minha boca abriu-se na preparação de um grito, 'Motorista!', porém meus lábios foram ficando gelados, como se o suor e a saliva os trancassem um no outro. Como trava de um baú, ou de um caixão'. O primeiro parágrafo é a expressão simbólica do momento decisivo vivido pela personagem Flávia.

Perder o bonde

Rememoração de uma vida que se obrigou a acomodar-se à sombra da irmã bailarina que lhe roubou o amor do pai, a admiração de todos e depois o amor de um homem o desenhista, cujo nome verdadeiro só saberemos nas últimas páginas o romance se faz a partir desse dar-se conta de 'perder o bonde' grafado no primeiro parágrafo. Já madura, Flávia acorda do sonho difícil, bebe café, procura um cigarro e decide se abre ou não a porta da casa cheia de fantasmas cuja campainha toca insistentemente. Contrariamente a toda simbologia possível, se abrir a porta continuará no sonho reprimindo o grito e as lembranças mais doloridas, controlará quimicamente sua loucura. Se não abrir, talvez, uma chance de trazer à tona os traumas antigos e entregar-se à lucidez fria da vida.

O impasse pontua o livro e dá ordem às lembranças numa passada a limpo da trajetória de vida. O leitor nunca saberá qual das portas Flávia abriu, se a interior, se a exterior. A única prova de que alguma foi aberta é a presença do relato, inscrevendo o livro como a tentativa de tomar o último bonde, destravar o baú. A estratégia narrativa de Natália Nami coloca em cena, assim, uma personagem que se escreve tornando-se agente enunciadora de sua própria transformação e um livro que nasce dessa experiência apagando as marcas de autoria.

'Eu tinha que sair dali para o mundo dos outros.' Essa é a consciência que faz Flávia abrir a porta de um banheiro de boate, onde se dá conta por primeira vez de sua loucura, lugar onde foge para aplacar a náusea de todas as descobertas desconcertantes. A mesma frase, num jogo de espelhos entre passado e presente, servirá para a decisão de abrir ou não a porta derradeira, aquela que permite escolher entre duas fugas: uma para fora de si e que a salvaria outra para dentro, para o silêncio e a passividade.

O momento presente da narrativa, a encruzilhada simbólica em que se encontra a protagonista do romance é justamente aquele em que se sai da cegueira momentânea causada pelo excesso de luz, como quando se olha diretamente para o sol e depois se tenta descobrir de novo o aspecto das coisas visíveis do mundo material. Esse momento pode ser encontrado numa passagem exemplar de 'Sargento Garcia', o conto de Caio Fernando Abreu: 'Parado no portão de ferro, olhei direto para o sol. Meu truque antigo: o em volta tão claro que virava seu oposto e se tornava escuro, enchendo-se de sombras e reflexos que se uniam aos poucos, organizando-se em forma de objetos ou apenas dançando soltos no espaço à minha frente, sem formar coisa alguma'.

Mover-se entre sombras e reflexos depois do excesso de lucidez da rememoração da derradeira frase dita por Flávia no dia da morte de seus pais é o desafio a que ela se entrega entre um toque e outro da campainha. Chove, não há sol no céu desse dia, mas ela, enfim, o deseja e o contorno aparece criado nela, nesse seu desejo, numa bonita quase última cena: 'Fechei os olhos e fui desenhando-o, o nascer do sol imaginado, na lousa da memória que subia o morro carregando suas malas, saudando-me e desculpando-se pelo atraso; juntei os tons alaranjados, raspei o giz vermelho, esfumacei para dar um efeito sutil, pedi emprestado à minha mãe o turquesa de seu vestido para o céu, o tom escurecido dos sapatos para o mar, era cedo e era frio! O frio de começo que carregam todas as manhãs. Depois o amarelo, o dourado do sol, que deve ter vindo, aos poucos, passo a passo, como se descesse as escadas, os degraus'.

Oco da vida

Essa personagem, de quem nos tornamos íntimos na leitura do romance, se move no 'oco da vida' fazendo um 'esforço descomunal para sair do lugar'. A sensação de impotência que acompanha a consciência da necessidade de continuar o movimento, de continuar a levar a vida é o tom do romance que, ao contar o caso individual da personagem Flávia, tematiza a angústia coletiva moderna do peso da existência e da ausência de um projeto de futuro que marcam o presente. Como se fôssemos todos uma mulher diante de uma porta.

A estrutura fragmentária potencializa o tom escuro e denso da narrativa e envolve as memórias enterradas de Flávia, que vêm à tona aos pedaços, dando provas da firmeza com que a autora conduz a trama e busca uma escrita que se faz numa tensão que ultrapassa o simples enredo. Essa característica se obtém também pela escrita pautada no cuidado com a linguagem. Frases curtas, uso do ponto no lugar da pausa breve da vírgula, adjetivos exatos e comedidamente empregados, aliterações frequentes, são algumas mostras do estilo da autora e reforçam um afeto que adensa o livro, cortado apenas pela repetição às vezes excessiva da palavra e do desejo de gritar.

* Autora do livro Tinha uma coisa aqui (7 Letras, 2007) e doutoranda em Literatura Brasileira pela UFRJ