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Coletânea com 68 poemas de Ildásio Tavares homenageia Baudelaire

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Pedro Lyra*, Jornal do Brasil

RIO DE JANEIRO - Poeta (Odes brasileiras - 1998), romancista (A Ninfa - 1993), novelista (Até que a morte os uma - 2004), contista (O amor é um pássaro selvagem - 2004), dramaturgo (Lídia de Oxum - 2005), cronista (Nossos colonizadores africanos - 1995), letrista (parceria com Vinicius, cantado por Maria Bethânia, Maria Creuza e outros), ensaísta (A arte de traduzir - 2001), crítico (resenhas em diversos jornais e revistas), tradutor (As viagens de Gulliver - 1974), trovador (quadrinhas satíricas espalhadas pelo país e hoje pela Internet), jornalista (coluna semanal na Tribuna da Bahia), professor (aposentado de Literatura Portuguesa da UFBa), Ildásio Tavares é o maior polígrafo da Geração-60 e um dos últimos representantes dessa espécie em extinção.

Publicado em Portugal por uma heróica editora (a Labirinto, de Lisboa) até hoje especializada em poesia, As flores do caos com seu ostensivo tributo/homenagem a Baudelaire é o seu 19º título no campo da poesia. É uma coletânea de 68 sonetos, selecionados dentre os mais de 800 já escritos pelo autor, vários deles incluídos nos volumes anteriores.

O conjunto está dividido em 8 blocos temáticos: abre com 1) 'Sonetos da Posse' apenas 4 peças do forte erotismo que o subtítulo prenuncia ('Amar é possuir. Não mais que o gozo/ quero' p.22), mas também de um sentimento sereno e que se quer recíproco ('dois no galope até o sol de um só orgasmo' - id.), atravessado pela poesia ('teu corpo [é] a página desta escritura' - p.20).

O 2º bloco, 'Sonetos da Incerteza', com 18 peças, abrange uma temática variada, que vai do amor à reflexão filosófica, tudo sintetizado na antológica chave-de-ouro do 'Soneto enigmático': 'viver é um exercício de incerteza' (p.28).

O 3º, 'Paramour', com 16 peças, volta a tematizar o amor, em alguns dos melhores sonetos do livro, com vários versos definitivos, como 'Desejo és o tirano da razão' (p.44) ou 'nada pode a moral contra a paixão' (p.54).

O 4º, 'Sonetos à minha amada', são apenas 4 peças de celebração de um amor transitório mas feliz, prática rara na tradição estética, que tem privilegiado a arte de sublimação, como forma de superação da negatividade, pois que o estado feliz é objeto de vivência, não de arte. Mas é um amor idealizado, que funde mulher e poesia, como em 'Neste soneto arrasto a triste sina/ de só em versos tê-la' (p.63).

O 5º, 'De cor', são 8 sonetos congratulatórios, evocando nomes da nossa poesia, como Carlos Nejar, Ivan Junqueira, Florbela Espanca, Alberto da Costa e Silva e outros não nomeados. No 'Soneto a Rachel de Queirós', define o pathos do bloco anterior: 'Mas a vida é pequena para o amor;/ ah, e o amor só é grande na poesia' (p.75).

O 6º são 4 'Ressonetos' e o 7º são 5 'Sonetinos' em metros raros para o soneto: um octossilábico e 4 em redondilha menor.

Fechando o volume, 'IX Sonetos da Inconfidência' celebram os atores desse episódio histórico: Gonzaga com sua Marília, Cláudio com sua Dorotéia, mas os melhores me parecem os sonetos 'Os Alvarenga' (o Silva e o Peixoto) e 'O Silvério'. No primeiro (p.99), o poeta toma o sonho dos inconfidentes para questionar a relação arte-sociedade, deduzindo a impotência da palavra poética para a transformação social: 'O beijo inebriante da Utopia/ afirma enquanto a Realidade nega'; contesta a funcionalidade das propostas do Iluminismo, que fundamentou a conjura: 'De que serviu nossa iluminação?'; e constata, melancolicamente: 'poesia nunca fez revolução'. Certo: a poesia não tem poder para mudar a realidade, mas tem para mudar as consciências e é esta sua propriedade que leva um poeta a fazer lamentos como esse. No segundo (p.96), explora a figura do traidor e expõe um fato muito atual: a falta de ética de certos agentes públicos. Ele o retrata: 'Meu coração é de metal sonante', para atribuir-lhe esta divisa: 'Só o dinheiro a todo mundo encanta'. Com esta justificativa: 'De ilusões/ jamais viveu quem é comerciante'. Fatos como estes levam o poeta a uma crítica à nossa civilização e a um lamento pelo estado da poesia em nosso mundo: 'o crime, sim, a poesia não compensa' (p.29). Seria recomendável que nossos políticos lessem este soneto: alguns poderiam se reconhecer na paradigmática figura de Joaquim Silvério dos Reis. Quase todos os denunciados por corrupção são empresários. O que estão fazendo no Congresso Nacional? É um lugar de políticos honrados e competentes não de negociantes!

Destaco do livro um pé-de-verso radical, de fundo alcance filosófico, em face da tradição do pensamento ocidental. Contrapondo Freud a Descartes, como duas das grandes linhas-mestra da civilização e lembrando as teses básicas desses dois grandes pensadores, o poeta afirma: 'Desejo, logo existo' (p.45). Como o desejo antecede o pensamento, a razão primeira está com Freud; com Descartes, só a razão posterior, quando o sujeito, já de posse de uma linguagem, toma consciência de que deseja.

A expressão de Ildásio em As flores do caos é diversa de algumas de suas melhores realizações anteriores: o verso não é tão linearmente discursivo como nas Odes brasileiras, que qualifiquei noutra resenha de 'odes como epístolas', nem a dicção é tão satírica como em Canto do homem cotidiano, que é um mini-épico pós-moderno. Exigências do soneto, ele adota uma dicção mais sóbria, o pensamento é mais contido, o verso não é livre, embora a métrica seja bastante flexível: como se pode ver pelas citações, ele alterna o decassílabo e o alexandrino, até com uns raros eneassilábicos ou undecassilábicos. Tratando-se de um poeta de técnica apurada, essa variação talvez não configure uma falha por quebra de métrica e seja intencional, em passagens cuja enunciação não se ajustasse a uma medida prévia como se o poeta, mesmo dentro de um certo padrão métrico, se concedesse o direito a uns desvios, desde que justificáveis por expressivos. Em certos casos, ele chega ao requinte de um 'Soneto em arte maior' (p.52), embora o 10º verso exija uma forçada elisão em 'Restará o' para compor o primeiro hemistíquio num anapéstico-iâmbico - esta sim, uma forma em desuso há muito tempo, desde que o Classicismo renascentista consagrou o decassílabo heróico. E entre várias intertextualizações, utiliza um verso inteiro de Bilac: 'Minha alma se abrirá como um vulcão' (p.55), do célebre soneto 'Maldição'.

Importante que este livro tenha sido publicado em Portugal. Qualquer poeta brasileiro que já tenha sido editado fora do Brasil sabe o que isto significa não apenas para ele, mas para a nossa literatura. Se tivéssemos um programa cultural sério (isto é: se nossos governos tivessem condição de reconhecer o valor da alta cultura), este não seria um fato tão raro. Mas eles assim como a tevê, escrava da cultura/diversão concretizada pela música popular, pelo cinema, pela telenovela, pelo esporte etc. têm medo da poesia, completamente por isso banida dos projetos governamentais e da tela.

Este é o quarto livro de sonetos que resenho para o Ideias só neste ano. Os outros foram de Shakespeare, de Guilherme de Almeida e de Marcus Accioly. Faço a observação apenas para alertar aqueles impotentes predadores que consideravam a mais nobre forma lírica uma espécie morta.

* Poeta e crítico