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David Feldman recria com louvor sonoridade do Beco das Garrafas

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Luiz Orlando Carneiro, Jornal do Brasil

BRASÍLIA - Há pouco mais de quatro anos, neste espaço, comentei o show do pianista carioca David Feldman, em trio com Rafael Barata (bateria) e Jorge Helder (baixo), no antigo Mistura Fina da Lagoa, numa noite promovida pelo CJUB (hoje o Clube de Jazz e Bossa), intitulada O som do Beco das Garrafas. Feldman hoje com 31 anos voltava então de uma longa estada em Nova York, onde se graduou na New School University, e se enturmou com o primeiro time do jazz da Big Apple. Naquela ocasião, cheguei a compará-lo a Jean-Michel Pilc e a Uri Caine, tecladistas que aliam a uma postura concertística e a uma técnica apurada aquela concepção de que o jazz é, basicamente, o 'som da supresa' , demonstrando ainda que o improvisador não se deve contentar com o conforto da pilotagem semiautomática proporcionado pelo domínio dos acordes de base, mas desconstruir e reconstruir os temas em blocos que formam um todo pantonal e polirrítmico .

A apreciação é mais do que aplicável ao CD editado pela EMI, com o mesmo título daquele memorável show, a ser lançado amanhã, a partir das 19h, no Allegro Bistrô da Modern Sound (Rua Barata Ribeiro, 502). No álbum gravado em estúdio, em janeiro do ano passado Feldman mantém o alto nível do trio de 2005, ao escalar Sérgio Barrozo (baixo) e Paulo Braga (bateria). Ele reinterpreta três temas pelos quais tem especial xodó: São Salvador (4m40), de Durval Ferreira; Sambou, sambou (5m37), de João Donato; Rapaz de bem (6m31), de Johnny Alf. Toma ainda como ponto de partida (e de chegada) Eu a a brisa (6m10), uma outra canção de Alf; Brigas nunca mais (6m10) e Só tinha de ser com você (6m08), de Tom Jobim, evidentemente; Sabe você (7m27), de Carlos Lyra, e Tristeza de nós dois (5m54), de Bebeto, Durval Ferreira e Maurício Einhorn. A faixa-título e ponto alto do CD (4m50), de autoria do pianista, é um exuberante tour de force esquentado pela bateria de Braga, e tem como introdução uma exclamação percussiva do trio, de menos de 15 segundos, batizada de Beco engarrafado.

Feitas as contas (excluindo-se a bossa acima citada), a média de duração das faixas do disco supera os seis minutos, o que já indica o esmero com que foram concebidas. Não só em termos de arranjos, mas também de divisão de espaços para as improvisações do líder e as intervenções bem dosadas, em breves solos ou troca de compassos, de Barrozo e Braga dois ícones em seus instrumentos , como destaca Leo Gandelman no texto que escreveu para o álbum.

O veterano Maurício Einhorn pontifica, em outra nota: (...) sem sombra de dúvida, ouvindo a segunda faixa (Sambou, sambou), eu já endosso o piano responsável, precocemente maduro e personalíssimo de Feldman .

Feldman, é claro, não conheceu aquele beco na Rua Duvivier, onde floresceram no Bottle's e no Little Club a bossa nova e o samba jazz (ou jazz samba). Mas diz que, ainda criança, ouvindo discos e histórias de quem esteve por lá fui aluno do inigualável Luzinho Eça comecei a desejar que inventassem uma máquina do tempo . E acrescenta: Este disco é a minha máquina do tempo particular (...) .

Na verdade, o notável pianista não está, em O som do beco..., revivendo o passado, como quem folheia um velho álbum de retratos . Ele visita o passado, nele se inspira, e descreve suas impressões e emoções no idioma jazzístico, com referências explícitas e implícitas a Bud Powell, Thelonious Monk, McCoy Tyner e Bill Evans. Seja manipulando o tema em tempos diversos e em ângulos tonais inesperados (Brigas nunca mais), seja no tratamento meditativo, com delicados e rarefeitos achados harmônicos (Eu e a brisa).