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Marcelino: romance pré-modernista faz oposição à Macunaíma

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Vivaldo Andrade dos Santos, Jornal do Brasil

RIO DE JANEIRO - Verão de 1942, ano em que o Brasil declara guerra à Alemanha. Esse momento histórico é o pano de fundo do romance de Godofredo de Oliveira Neto, no qual vem narrada a história do jovem Marcelino Alves Nanmbrá dos Santos, descrito como 'uma mistura de açoriano com negro e índio', nativo da vila de pescadores de Praia de Nego Forro, no litoral catarinense. Marcelino é a narrativa de um curto mas significativo período na vida do jovem pescador, sua relação com a família do senador Nazareno, funcionário federal do Rio de Janeiro, da sua mulher Emma (donos de uma casa de veraneio na vila de pescadores), seus filhos e a governanta Eve.

Do ponto de vista formal, Godofredo recorre a duas formas de romance nas quais o personagem Marcelino é uma espécie de baliza da narrativa a partir da qual se desenrolam duas histórias. A primeira delas, o romance idílico, em torno da vida do jovem pescador, sua relação com a baleeira Divino Espírito Santo, fiel embarcação do ofício diário, suas brincadeiras com os filhos do ex-senador, seus amores, e a descoberta do sexo. A segunda, o romance histórico a que o autor recorre para construir sua narrativa. O enredo é tecido a partir do ano de 1942, a História (a Segunda Grande Guerra, a ditadura Vargas), salpicado pelo universo cultural da época com a Rádio Tupi, a música de Ari Barroso, Lamartine Babo, Almirante, Francisco Alves, Ataulfo Alves, a revista Seleções e as novelas da Rádio Nacional.

Godofredo flerta aqui com o romance detetivesco. Marcelino se vê no centro de uma trama política, articulada por Eve, a governanta polonesa, femme fatale, iniciadora sexual do jovem que, depois da mudança para o Rio, convence Marcelino, na sua ingenuidade e simplicidade, a se tornar o Salvador do Brasil. Marcelino seria 'o representante da nova raça brasileira e vai mostrar ao mundo que a autêntica nação brasileira é contra a intromissão dos Estados Unidos nos assuntos internos do Brasil'. O plano era fazer com que Marcelino assassinasse um oficial americano. O plano fracassa, Marcelino é preso e enviado de volta à Praia do Nego Forro.

É importante ressaltar a relação de Marcelino com o romance idílico, e, sob essa ótica analítica, examinar detalhadamente o caráter do personagem, especialmente sua simplicidade. Godofredo conta a história do jovem pescador numa prosa de alta simplicidade lírica, como, por exemplo, nas muitas passagens relacionadas à natureza e ao modo de interação do protagonista com ela. No romance idílico, analisado pelo crítico Mikhail Bakhtin, o tema da morte é visto como um acontecimento natural, ligado ao ciclo da vida. Em Marcelino isso se revela numa das passagens mais belas e dramáticas do romance, a morte do personagem Edinho, menino que morre afogado durante uma tempestade que atinge a embarcação. Em contraponto a esta visão da morte, está o plano de assassinato do oficial americano, em que a morte é extraordinária, fora do ciclo natural da vida. Nesse sentido, sendo Marcelino oriundo e marcado pela natureza idílica, o mais óbvio é que a ideia de fazer do jovem pescador um assassino está fadada ao fracasso.

Paradoxalmente, a sexualidade não vem sublimada e é o motor propulsor do jovem catarinense. Marcelino apresenta um forte elo de ligação telúrica e moral com a Praia do Nego Forro. É descrito como trabalhador, humilde e a tal ponto amante da natureza que nela se espelha e com ela quer se fundir 'vontade de ser um pássaro'. Embora apegado à terra natal, o balseiro Marcelino mostra-se fascinado pelas coisas da cidade quando vem para o Rio, fascinação, diga-se de passagem, sempre marcada pela nostalgia da praia natal.

Ao contrário de Marcelino, na família do ex-senador, tipicamente citadina, impera a corrupção moral (as relações extra-conjugais e a falsidade política, a trama política articulada pela governanta), e a marca da diferença de classe social com os nativos do vilarejo. Até mesmo a relação próxima de Marcelino com essa família transforma-o, corrompe-o, diz a personagem Martinha. Se o individualismo orienta a vida na cidade, o sentido de comunidade é o que prevalece na vila dos pescadores. Em Marcelino prevalece 'a profunda humanidade do homem idílico em si mesmo e as relações humanitárias entre as pessoas', como sugere Bakhtin. O trabalho é integrado à natureza, de forma não mecanizado, sobressaindo a experiência da coletividade.

A opção do autor por construir seu romance a partir da dicotomia campo versus cidade, típica dos romances idílicos e das narrativas de caráter regionalista, com raízes no século 18, acima de ser apenas inocente, é sobretudo provocadora. Na nota final do livro, o romance é analisado 'pelos amigos cineastas' como um romance típico do século 19. Marcelino promove uma reatualização do localismo. E ao reatualizar o romance idílico Godofredo de Oliveira Neto coloca uma pedra lapidar no túmulo modernista. O homem natural rousseaniano - o homem feliz, solitário, que vive na simplicidade, capaz de sobreviver por si e pelo que a natureza oferece, além de ser capaz de viver em paz com os seus semelhantes ressurge nas praias do litoral catarinense suplantando o antropófago oswaldiano emblemático da cultura brasileira. É Marcelino versus Macunaíma, moral e estilisticamente. Se Macunaíma é o herói sem nenhum caráter, herói de nossa gente, Marcelino é o herói de bom caráter, sem vício, sem maldade, unicamente traído pela emoção do sexo. Marcelino não é o salvador da nação brasileira, como propõe Eve, mas um herói de si mesmo que busca a salvação individual. Se a ética de Macunaíma é a ética da preguiça, a ética de Marcelino é a ética do trabalho. O heroísmo de Marcelino não se situa no espaço da nação brasileira mas sim no espaço da Praia do Nego Forro. Macunaíma é símbolo da identidade brasileira, presente no inconsciente coletivo do povo brasileiro. Marcelino, ao contrário, é a idealização, a sublimação de um ente perdido de pescadores, perdido em plena comunhão com a natureza praieira do litoral sulista.

Enquanto o ,Macunaíma de Mário de Andrade se constrói sobre a fabricação de uma linguagem nova, fundindo a língua falada com a língua erudita, marcadamente estilizada, em Marcelino, ao contrário, Godofredo recupera uma dicção de alta plasticidade regionalista. Uma dicção 'arcaica', dir-se-ia, se pensada a partir dos parâmetros da vanguarda modernista, cujo paradigma é Macunaíma.

Godofredo de Oliveira Neto não busca uma língua nova como propunham os modernistas, mas se ancora numa literatura que preza a linguagem com as marcas locais, contudo extremamente bem cuidada, despojada do artificialismo, casada perfeitamente ao universo do jovem pescador. Marcelino é, em vários aspectos, um romance 'pré-modernista'. Não no sentido de que ele vive da ânsia de ser moderno, típica da literatura produzida nas primeiras décadas do século 20. Godofredo opta por uma forma romanesca que distancia dos filhos da Semana de 22 e, provocador, vai na contramão do cânone da literatura brasileira instituído pelo modernismo paulista.