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Carlos Heitor Cony revela os livros que deixou de fazer

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Alvaro Costa e Silva, JB Online

RIO - Refestelado no sofá do escritório no Edifício São Luís, no Largo do Machado, Carlos Heitor Cony parece viajar ao passado quando contempla a capa e folheia mais uma edição a sexta, lançada recentemente pela Alfaguara de Informação ao crucificado, pequeno romance (pouco mais de 100 páginas) publicado pela primeira vez em 1961, e tido por parte dos admiradores do escritor como sua melhor obra. Certamente é a mais autobiográfica.

Olhando hoje para o menino que fui, fica a impressão de que ele é a porção mais autêntica que tive na vida. Fui mais autêntico no seminário do que fora do seminário. Quando aquela experiência acabou, na realidade quem acabou fui eu. Entrei no jogo do mundo define Cony os tempos de internato no Seminário Arquidiocesano de São José, no Rio Comprido, de onde saiu, para nunca mais, num domingo de outubro de 1945.

Elaborado em forma de diário, Informação ao crucificado relata os dias que antecedem a decisão de um jovem sacerdote, João Falcão, de abandonar o seminário às vésperas da tonsura. Antecipar o fim do livro e a famosa frase E eis que vos dou a informação: Deus acabou é o de menos. Na orelha da primeira edição, o intelectual católico Alceu Amoroso Lima já o fizera. O que conta é a investigação que resulta na terrível descoberta.

Retrato minha atração e repulsa pela vida religiosa. A repulsa venceu a atração, mas saí chorando revela o escritor.

Escrever, não mais

Recentemente, nas páginas deste Ideias, Carlos Heitor Cony forneceu outra informação: não escreve mais ficção. Deu por encerrada uma carreira de 15 romances, iniciada com O ventre, de 1958 (na verdade, escrito dois anos antes). Entre seus títulos mais marcantes, estão Pessach: a travessia (de 1967, que acaba de ganhar tradução francesa pelas Éditions Folies d´encre ), Pilatos (1973), Quase memória (1995), A casa do poeta trágico (1997).

O argumento para a desistência é simples: ele não tem mais a pretensão de escrever o seu Guerra e paz.

No caminho ficaram dois projetos de romances, ambos intimamente ligados a Informação ao crucificado que, nos planos do autor, seria o pontapé inicial para uma trilogia.

Logo em seguida, pensei na Paixão segundo Mateus, mesmo nome da obra de Bach. No caso, o garoto do seminário iria até o fim, iria ser padre, iria viver sua paixão. O livro chegou a ser anunciado pela Civilização Brasileira lembra Cony.

O conto que dá título à coletânea Sobre todas as coisas, publicada em 1968, é um estudo para este livro pensado e jamais escrito. Começa assim: Repara: o homem envolto em trevas põe a mão em concha e risca o fósforo. Ao romper da chama, o rosto toma dimensões sinistras. Não se lhe vê os olhos; o homem se curva, como se orasse, ou se adorasse a estremecida deusa que dança azul e rubra sobre os dedos .

Também prometido desde a década de 60, Missa para o papa Marcelo concluiria a trilogia. A origem do título outra vez é musical: referência à Missa papae Marcelli, composta, para seis vozes, pelo romano Giovani Pierluigi da Palestrina em 1555, e à qual se atribui a criação da polifonia. Ao passar por um sério problema de saúde em 1998, o escritor voltou a se interessar pelo projeto. Algumas páginas saíram. Mas só:

Para escrever este romance, eu teria de chegar a um acordo comigo mesmo a respeito da fé. Sou um ateu pusilânime, que, por pura admiração, continua ligado sentimentalmente a determinados santos. Mas não rezo, não faço promessa, nem lhes peço nada. Não cheguei ao tal acordo. Por isso o livro não vingou. O personagem principal seria um padre doente, epilético, que tinha uma espécie de possessão.

Memória em crônicas

Para compensar o aborto desses romances, o leitor fiel de Cony terá em mãos um produto diferente ainda este ano. A Objetiva que, sob a chancela do selo Alfaguara, vem paulatinamente repondo sua obra romanesca em circulação prepara a edição de Eu, aos pedaços, reunião de crônicas de cunho memorialístico publicadas no JORNAL DO BRASIL, Correio da Manhã, Folha de S. Paulo e revista Manchete:

Estão divididas por temas: família, política, religião, literatura. A leitura delas dá uma ideia mais ou menos do que seria minha vida. Não poderia jamais fazer uma autobiografia clássica. Fatalmente, ia me trair, no sentindo de falsificar.

Há ainda outra possível surpresa. Em diversos momentos da vida, Cony manteve um diário íntimo. Parte desse material foi transformada em matéria de ficção: o romance Tijolo de segurança(1960), por exemplo. Informação ao crucificado usa o gênero de empréstimo. E Quase memória é quase um diário. Guardados e encadernados, existem quatro grossos volumes que cobrem sobretudo o período de lua-de-mel do escritor com a informática, nos anos 90, quando também fez seu retorno à ficção depois de mais de 20 anos de silêncio.

Com a facilidade de escrever no computador, voltei a ter o gosto de fazer o diário. Todo o processo de minha entrada na Academia Brasileira de Letras está relatado nele. Mas parei, porque fiquei de saco cheio. Aliás, fico de saco cheio muito rapidamente brinca.

Resta saber quanto tempo Cony sofrerá a síndrome de Bartleby, o personagem de Melville que, paralisado, sempre responde com a frase: Preferiria não fazer . Por enquanto, dedica-se a reler romances de autores pouco conhecidos no Brasil: O anão, do sueco Par Lagerkvist e Fontamara, do italiano Ignazio Silone. Este ele considera o primeiro filme do neo-realismo .

Pois será que Carlos Heitor Cony, um belo dia, também não vai enjoar, ficar de saco cheio, de não escrever mais ficção? E aprontar uma segunda volta triunfal ao romance?

A vida é mortal, a morte é vital filosofa, desconversando. Parei de escrever por causa do seguinte: aos 83 anos, já passei muito do desafio bíblico dos 70, e o único projeto que sou capaz de fazer ainda é morrer. Está dentro das minhas possibilidades.