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Marcus Accioly usa sonetos para tratar de grandes nomes da cultura

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Pedro Lyra*, JB Online

RIO - Daguerreótipos, novo livro do pernambucano Marcus Accioly, um dos maiores poetas da chamada Geração-60, é um imponente álbum de sonetos sobre 163 grandes nomes da cultura (um ou outro da vida social), quase todos de destino trágico. Escrevi álbum porque o termo-título designa o primeiro aparelho fotográfico, que deriva do nome do seu inventor, o francês Louis Daguèrre, na primeira metade do século 19.

Portanto, são retratos, perfis existenciais dos autores selecionados da arte, da ciência, da filosofia todos eles de alguma forma marcados pela dor ou pelo mal. E, no entanto, são figuras a quem a humanidade deve o que a civilização produziu de mais elevado, de mais humanista ao longo dos séculos. Nenhum grande agente da política, como se o autor insinuasse que deles (que não costumam padecer o que aqueles padeceram), não se pode esperar nada de bom para a humanidade, e que seus nomes devem ser sepultados no esquecimento. Deve ser por isso que eles adoram batizar suas obras com seus próprios nomes.

Em 10 epígrafes, o autor cita alguns teóricos que falaram sobre os dois temas do livro. E destaca a afirmação de Walter Muschg: Os poetas não são bons, não podem ser bons; não o são no sentido moral, senão no trágico. Bons são os santos, que triunfam sobre o mal e retêm a dor. Os poetas triunfam sobre a dor e retêm o mal. Por isso tampouco são felizes, pois só se é feliz à medida que se é bom . É uma tese muito questionável, no que se refere aos poetas. Primeiro porque, se de fato eles triunfam sobre a dor, superando-a em sua obra, não é em absoluto certo que retenham o mal. Ao contrário: eles o procuram afastar, tanto de si quanto dos outros. Segundo porque, se não são felizes, não é porque não sejam bons, mas porque lutam e sofrem pelo sonho de um ideal inatingível: o bem universal.

Numa espécie de posfácio, o poeta discorre sobre a motivação e a gênese do seu trabalho, ressaltando a presença da dor e do mal na vida humana. Mesmo sem recorrer ao conceito freudiano de sublimação, ele deixa claro como a maior e melhor parte da obra desses luminares é provocada por esses dois estados existenciais negativos.

Assim temos, entre males e dores, figuras marcadas pela doença (um Chopin, um Castro Alves, um Augusto dos Anjos), pela loucura (um Nerval, um Nietzsche, um Holderlin), pelo acidente (um James Dean, um Mário Faustino, um Albert Camus, um Shelley), pela pobreza (um Chatterton), pela mutilação (um Homero, um Milton, um Beethoven, um Camões), pela perseguição (um Dante, um Cervantes), pela aventura (um Byron, um Genet), pelo vício (um Baudelaire, um Dostoievski), pelo preconceito (um Oscar Wilde, um Cruz e Souza), pela violência (um Lennon, um Garcia Lorca, um Euclides da Cunha), pelo desamor (um Musset), e tudo isso que acabou por arrastá-los à morte, muitas vezes por suicídio (uma Florbela Espanca, um Antero, uma Virgínia Wolf, um Paul Celan, uma Sylvia Plath, um Maiakovski, um Essenin, um Sá-Carneiro, uma Marilyn, um Zweig, um Santos Dumont, um Camilo, uma Safo) se reflete em suas obras.

Como se vê pelos exemplos pinçados, a maior parte é de nomes anteriores à nossa modernidade. E aqui somos forçados a refletir sobre a situação da intelectualidade, particularmente dos artistas, depois da revolução industrial. Porque a reprodutibilidade técnica da obra (Walter Benjamin, outro suicida) transformou todas as artes com a solitária exceção da poesia em profissões, altamente rendosas em nosso tempo, sobretudo depois das invenções da grande mídia. Os criadores contemporâneos parecem indivíduos mais integrados a sua realidade, em condições materiais portanto de contornar dores e males. Nessa soberba galeria, são raros os gênios do passado que se podem considerar felizes. Já os astros do esporte e da cultura de massa...

Marcus Accioly é um dos mais hábeis artesãos contemporâneos do soneto única forma fixa legada pela tradição ainda em pleno funcionamento, pelo menos nos poetas mais cultos, mais lúcidos e mais bem dotados. Particularmente no livro Narciso (de 1985), ele faz com a forma do soneto o que nunca ninguém chegou nem perto: sonetos duplicados, sonetos invertidos, sonetos acoplados, sonetos decompostos, sonetos de versos com uma só palavra, uma só sílaba e até com uma só letra, como neste minúsculo e antológico retrato verbal de Narciso, em dois mini-sonetos, com os pares estróficos invertidos para produzir o espelhamento: 1º) ó / e- / x- / p- // o- / s- / t- / o // a- / o / p- // o- / ç- / o ; 2º) n- / o / s- // u- / p- / o- // s- / t- / o / r- // o- / s- / t- / o resultante da verticalização dos grafemas desses dois sintagmas sub-oracionais hexassilábicos, um vocativo e um adjunto adverbial de lugar ( ó exposto ao poço / no suposto rosto ), ambos com as 14 letras dos 14 versos do soneto, e que se podem ler de 3 maneiras: 1ª) como eneassilábicos iâmbicos (com uma diérese nas duas primeiras sílabas: ó / ex- , pela tonicidade da interjeição, ictos em 3-5-9-11; 2ª) como decassílabos sáficos (ictos em 4-8-10), eliminando-se a tonicidade da interjeição numa sinérese; 3ª) como redondilhas menores, ambas com ictos em 3 e 5. Não podendo obviamente ocorrer entre versos, a rima se torna mais expressiva: ocorre entre sonetos. É uma criação tipicamente representativa do pouco que a poesia pós-moderna tem de bom.

Este é um daqueles livros que se continua a escrever pelo resto da vida. Marcus Accioly pode acrescentar muitas das grandes e sofridas figuras humanas que estão faltando (e aponto pelo menos cinco notáveis lacunas: Elvis Presley e outras vítimas da perseguição que foram Sócrates, Galileu, Marx e Darwin), e assim chegar a uns 500 sonetos, deixando para a poesia brasileira um autêntico painel da humanidade, no que a condição humana tem de mais trágico para a vida e de mais fecundo para a arte um livro raro.

No meio de tantos nomes gloriosos, fica penoso localizar o que se deseja reler: para a próxima edição, o autor deve providenciar um índice mais funcional, por ordem alfabética ou cronológica.

*Pós-doutorado em poética pela Sorbonne