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Paula Glenadel desconstrói o feminino em novo livro

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Manoel Ricardo de Lima*, JB Online

RIO - Em 1999, Paula Glenadel publicou seu primeiro livro de poemas, A vida espiralada (Editora Caetés). Nesse pequeno livro, cinco versos em dois poemas diferentes chamam atenção para uma espécie de projeto poético que se iniciava ali. Do poema A vida espiralada , homônimo ao título do livro: o presente é um corredor estreito,/ o passado é memória de memória// e o futuro, um abrigo inóspito/ (fumaça subindo em anéis inúteis). E do poema Vertigem : A vertigem ainda ronda. Na fenda, ou dobra, que esses cinco versos apresentam, pode-se pensar uma perspectiva acerca do tempo para a poesia e do poema como afirmação soberana ou ausência de sentido , e é possível esticar toda uma ideia de começo, de reserva e de autonomia para a esfera que se desenha na figura da espiral por dentro da poesia de Paula Glenadel. Tanto é que em seu segundo livro, Quase uma arte, de 2005 (CosacNaify, coleção Às de Colete), o poeta Marcos Siscar chama atenção no prefácio para a artimanha de Paula em colocar a poesia no lugar em que a poesia se falta. Isso é uma evidência, mas é também um sacrifício, algo comparável ao que Georges Bataille diria com mais imprecisão e mais limite em seu Experiência interior: algo como crianças dentro de casa .

A crítica Patrícia San-Payo, em uma releitura desse texto de Bataille, sugere que se possa dizer que a poesia, ao cumprir o lugar da expressão do poeta sobre crianças domésticas, pode ser lida como uma manifestação frustrada do que a experiência interior mais radical subentende, exatamente porque arma uma conformação com outra ordem possível em que esta se pretende evadir. A poesia de Paula Glenadel segue o risco desta armadilha, num conjunto de imprecisões para demolir o edificado, daí, penso, a figura da espiral, no primeiro livro, e a imagem do quase, no segundo. A espiral como aquilo que reporta ao que não se pode atingir, tocar, alcançar, entre o sempre e o nunca; e o quase como um aberto, um campo para a brecha, este pouco menos e este pouco mais, ao mesmo tempo, esta falta presente.

Agora, recentemente, Paula publicou seu terceiro livro de poemas, A fábrica do feminino (7Letras

90 páginas, R$ 25). E não custa lembrar que ela é professora de literatura francesa na Universidade Federal Fluminense e que tem todo um trabalho de leitura crítica da poesia contemporânea atravessada por algumas questões que comparecem também em seus poemas, como a animalidade (no caso de Quase uma arte ) ou do limite extremo etc. Interessante perceber, como princípio e projeto, o quanto algumas questões importantes para ela parecem retornar neste livro, e de outra maneira. Seguindo Bataille, uma entre algumas das referências mais evidentes nos textos críticos da autora, ao dizer que a poesia coincide com o impossível , que a poesia pode ser também a máxima expressão do impossível e que a poesia talvez compareça como um gesto político soberano. Daí, o ponto: demolir o edificado, demolir o que edifica. Este A fábrica do feminino raspa e escava esse gesto. O tema que gira (ou os temas que giram) em torno do feminino segue o procedimento de uma linha de montagem que se articula a partir da indicação do título, a fábrica. E rápido se pode remeter ao fabbro , não apenas il miglior fabbro , que supostamente seria o poeta, mas a um fazedor outro, qualquer, mas que não abre mão de fazer a dor, que mantém latente alguma pulsão, uma paixão profunda. Este mesmo fabbro pode ser remetido à indústria, ao sistema de produção, ao feito à máquina, à prisão ou à vida rasa.

O que Paula apresenta neste seu livro, entre outras tantas possibilidades de lê-lo, é como é possível demolir um tema como o do feminino para deixá-lo vivo, a poesia como um deboche construído e destituído, entre falha e excesso, entre espiral e quase, entre fábrica e mito desfeito; interromper o discurso pronto para armar uma tessitura provisória. O poema Fatal , como exemplo, diz: Fabricamos uma fêmea. Fizemos isso, todas e todos e cada qual: uma fêmea fatal. Perigosa. Ardilosa. Malfadada. Malfazeja. Mas assim mesmo desejada. Ou melhor, desejada para isso mesmo. Para dar figura às coisas escuras. Nós a encarregamos de carregar o destino no colo. É um perigo para ela e para os outros, bonitinha, mas ordinária, essa que vai fermosa e não segura uma cantiga, minha senhor, (...). Daí que Ana Luísa Amaral imprima espaço no posfácio para dizer de uma sabotagem da tradição : uma sabotagem capaz de agenciamento e de abertura ao devir .

De outro lado, muito rapidamente, para dar notícia, um pequeno primeiro livro de Mariana Marques, chamado Transatlântico (La Barca, R$ 15), resvala no mesmo tema do feminino e seus entornos em mínimas narrativas sustentadas pelo desamparo que tem o provisório da caderneta de anotações. O livro segue o formato gráfico dos bons e velhos moleskines (aqueles cadernos de notas, bons para o diário e para a imprecisão do instante) numa série vertiginosa que aponta para um naufrágio, um outro barco bêbado, um outro lance de dados: penso em vender tudo o que tenho e comprar uma coisa só , diz no final da narrativa homônima ao livro. Este livro de Mariana recupera a virulenta vertigem de ternura , de Raduan Nassar, e propõe também que se possa pensar seguindo Bataille sobre o espaço mínimo para crianças dentro de casa . E assim, é possível seguir estas vertigens da linha de montagem de Paula Glenadel e da viagem de Mariana Marques como lascas de um pensamento bom .

*Escritor e professor de literatura. Autor de 'Quando todos os acidentes acontecem' (7Letras) e 'Falas Inacabadas' (Tomo, com Elida Tessler), entre outros.