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Sylvio Back: 'O roteiro é um cinema de papel'

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Mariana Filgueiras, JB Online

RIO - Em qual prateleira devem ser colocados os roteiros cinematográficos? Ao lado do teatro ou dos romances? O roteiro é um gênero narrativo? Para o cineasta Sylvio Back, que acaba de publicar seu décimo primeiro filme em livro Lance maior, de 1968 o texto de uma boa película não deve nada a um romance. Vai além: um roteiro bem amarrado está próximo à poesia.

Talvez mais preocupadas com a forte tendência do mercado do que com a carga poética das sequências, as editoras nacionais resolveram, finalmente, apostar no gênero. Além de Lance maior, da Imago, a editora ABCD Maior lança ABC Clube Democrático, um volume com quatro roteiros do cineasta Carlos Reichenbach : Aurélia Schwarzenêga (do filme Garotas do ABC), Lucineide falsa loura (do filme Falsa loura) e outros dois inéditos: Anjo frágil Antuérpia e A fiel operária Suzy Di. No fim do ano passado, a Imprensa Oficial pôs outros 11 títulos à venda, pelo selo Cinema Brasil, com os roteiros de O ano em que meus pais saíram de férias, O céu de Suely e Batismo de sangue, entre outros.

A edição de roteiros é uma prática usual de mercado na Europa, Estados Unidos e Japão, quase uma febre, uma exigência não só de cinéfilos e universitários, mas do leitor comum compara Back, que se vangloria de ser o diretor com mais roteiros publicados no país. O espectador adora virar leitor de um filme , da linguagem e carpintaria do roteiro, é como se ali encontrasse algum mistério revelado no que viu ou verá na tela. Isso transforma, sim, o roteiro de cinema num gênero.

O mais comum é encontrar nas estantes das livrarias obras que viraram filmes, quase nunca o contrário. Nos anos 60 e 70, muitos filmes tiveram seus roteiros publicados, como Deus e o diabo na terra do sol, lançado pela Civilização Brasileira em 1965, ou Tudo bem, de Arnaldo Jabor, pela mesma editora, em 1978. Neste mesmo ano, aliás, até a decupagem visual de um filme foi lançada: Limite: um filme de Mário Peixoto, pela Inelivro/Funarte.

Assim como a produção de cinema no país, a publicação dos textos também teve uma retomada , só que com muito menos fôlego. O roteiro de Carlota Joaquina, princesa do Brazil saiu em 1995; Terra Estrangeira em 1996; Navalha na carne em 1997. Depois de 2003, com o lançamento do roteiro de Cidade de Deus, pela Objetiva, enriquecido com fotos e críticas do filme, apareceram mais títulos, e agora até seriados de TV já têm seus roteiros publicados como A casa das sete mulheres ou Presença de Anita.

Ganha a pesquisa e ganha o leitor-espectador. Como os roteiros indicam as opções e soluções fílmicas adotadas pelo diretor, o que fica documentado é o processo criativo de uma época, a cozinha do filme. Nem por isso, no entanto, os roteiros têm um público fechado, como explica Back:

O roteiro é um cinema de papel. Jamais vai substituir o filme. A maioria das edições vem recheadas de uma espécie de making of. Gosto muito disso, de cercar o filme de uma memória textual, como que a tornar a leitura do roteiro algo desfrutável, a fazer o espectador introjetar e pensar melhor o filme, ainda que a obra deva falar por si mesma. Em Lance maior, por exemplo, há ainda ensaios de especialistas sobre a gênese da obra e a temática, fotos de cena, tudo para uma imersão crítica do leitor em todas as fases da criação detalha o cineasta, que tem ainda publicados os roteiros de Aleluia, Gretchen, República Guarani, Sete quedas, Vida e sangue de polaco, O auto-retrato de Bakun, Guerra do Brasil, Rádio auriverde, Yindio do Brasil, Zweig: a morte em cena e Cruz e Sousa: o poeta do desterro.

Lance Maior

Lance maior foi o primeiro longa de Sylvio Back e também da atriz Regina Duarte, então com 18 anos e longos cabelos louros. Claramente inspirado pela nouvelle vague francesa, em São Paulo S/A de Luís Sérgio Person e de linguagem oposta à não-linearidade do Cinema Novo, a trama conta a história de Mário (Reginaldo Faria), estudante que tenta ascender socialmente, envolvido com Cristina (Regina Duarte) e Neusa (Irene Stefânia).

Lançado em 1968, foi premiado e bem recebido pela crítica neste Jornal do Brasil, o crítico Ely Azeredo defendeu a obra como o primeiro filme moderno a comprovar que havia vida cinematográfica abaixo do eixo Rio-São Paulo e bem distante do Nordeste eleito pelo Cinema Novo como palco privilegiado de suas parábolas políticas .

O lançamento do roteiro comemora os 40 anos do filme que ainda não virou DVD, mas teve a cópia restaurada e exibida no encerramento do último Festival de Brasília. A fita será reexibida no MAM, no dia 4 de fevereiro.

Lance maior ainda exala uma pureza de linguagem e autoria irrepetíveis no meu cinema. Quem sabe aí não se escondam os germes que lhe adiam a morte e o esquecimento? elocubra Back.

Um guia, não uma Bíblia

Com o lançamento de quatro de seus roteiros, sendo dois deles inéditos, o cineasta Carlos Reichenbach acredita ter cumprido a função primordial dos textos.

O tratamento para a edição foi o de imaginar os textos como romances, como literatura. Tentei ser o menos técnico possível. Os roteiros estão publicados não como foram filmados, mas como foram escritos. Um bom roteiro tem de ser entendido por todos, por quem faz e quem não faz cinema acredita Reichenbach, que também teve enfeixados os roteiros de Dois córregos e Bens confiscados.

Ao contrário de Back, Carlão, como é conhecido, prefere os textos publicados sem fotos das cenas ou ensaios críticos de apoio. Para ele, o leitor/espectador deve encarar o texto como outra obra, e criar, ele mesmo, os personagens e sequências na cabeça.

Não quis colocar fotos do filme para não provocar uma identificação do leitor com a atriz, por exemplo. Os roteiros atualmente ainda têm um pouco este crivo didático, mas acredito que, quando publicado, o interessante seja a literatura. No papel, o texto está aberto a qualquer leitura ensina Reichenbach, também professor de roteiro. São dois trabalhos paralelos na escritura de um roteiro: a construção do mapa em si, essencialmente impressionista, onde se descreve a imagem; e uma segunda parte, em que você se preocupa com o texto, o diálogo. O roteiro é um gênero, sim. Um híbrido entre o romance e o teatro, que deve ser um guia de trabalho, uma cartografia, mas nunca uma Bíblia.