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'Teoria da vanguarda', livro-evento de Peter Bürger, sai no Brasil

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Evando Nascimento*, JB Online

RIO - Teoria da vanguarda (Tradução de José Pedro Antunes. CosacNaify. 272 páginas. R$ 39), publicado pela primeira vez em 1974, é um estudo fundamental sobre a arte no século 20, agora traduzido e editado com extremo apuro entre nós pela CosacNaify. Dialogando sobretudo com Adorno e Lukács, mas também com Benjamin, o ensaio do professor alemão visa a reavaliar as relações entre arte e sociedade na primeira metade do século (agora) passado, bem como suas possíveis conseqüências na outra metade, com o advento das neovanguardas. Se, por um lado, alguns aspectos do pensamento de Bürger parecem hoje um tanto enrijecidos, com uma noção de classe social tributária da realidade vivenciada por Marx no século 19, noção a ser, portanto, redimensionada, por outro, suas conceituações são de grande atualidade, merecendo todas as discussões que as cercam, desde a divulgação inicial. Mesmo quando se discorda, aprende-se muitíssimo com o autor.

A tese fundamental do livro é que a vanguarda propõe uma autocrítica, refletindo sobre os próprios recursos artísticos, no momento em que a autonomia da arte atinge o ápice na sociedade dita burguesa. A expressão autonomia da arte significa que uma parte da produção cultural se separou, ganhando foros de independência. Trata-se, portanto, de uma abordagem política da estética, a qual teria se desvinculado dos outros processos sociais ou do que Bürger chama de práxis vital. As vanguardas históricas (sobretudo o dadaísmo e o surrealismo) teriam se incumbido de romper com esse esteticismo que segrega a arte do contexto social. Resumindo, os movimentos históricos de vanguarda negam determinações que são essenciais para a arte autônoma: a arte descolada da práxis vital, a produção individual e, divorciada desta, a recepção individual. A vanguarda tenciona a superação da arte autônoma, no sentido de uma transposição da arte para a práxis vital .

Por ser uma resposta ao esteticismo, que isolou a produção artística numa esfera, como conseqüência mesma do valor burguês de arte, a manifestação histórica das vanguardas se relaciona a pelo menos três fatores: primeiro, a ruptura com o princípio criador; por exemplo, a assinatura nos ready made de Duchamp, que são em geral estruturas pré-fabricadas, corrói o criacionismo esteticista, ligado ao valor romântico de gênio. O segundo fator seria a produção serial e a recepção coletiva, com o conseqüente questionamento do individualismo burguês. O último fator determinaria que há principalmente manifestações de vanguarda, em vez de obras em sentido convencional. Nessa perspectiva, Bürger vê na montagem um procedimento essencial para a atividade vanguardista, implicando justamente a distinção entre dois modos de conceber a obra. O primeiro modo seria a obra de arte orgânica, cujas partes se harmonizam com o todo, apagando seu caráter de objeto produzido. O segundo modo seria a obra de arte não-orgânica, de fatura vanguardista, que se apresenta como produto artificial, a ser reconhecido realmente como artefato e não como fruto da espontaneidade criadora. Desse modo, a montagem pode ser considerada como o princípio básico da arte vanguardista. A obra 'montada' aponta para o fato de ter sido composta a partir de fragmentos da realidade. Ela rompe com a aparência de totalidade. Assim, a intenção vanguardista de destruição da instituição arte, paradoxalmente, é realizada na própria obra de arte. Do intencionado revolucionamento da vida através da recondução da arte à práxis vital, resulta um revolucionamento da arte .

Para Bürger, as neovanguardas, que surgiram entre as décadas de 50 e 60, são ineficazes, pois repetem um gesto que era inicialmente uma provocação, como resposta à autonomia esteticista da arte. Essa é a grande aporia sinalizada pelo autor e que reverbera também na produção contemporânea: emergindo com o propósito de gerar um choque, que por sua vez desestabilizaria a instituição arte, para romper com o esteticismo e propiciar uma experiência que fizesse convergir arte e sociedade, a repetição do gesto vanguardista acaba por se institucionalizar e por reforçar a acomodação esteticista. Isso corresponde ao que Octavio Paz, em seu também fundamental Os filhos do barro, chamou de tradição de ruptura , ou seja, de tanto romper em nome do novo, a prática vanguardista geraria o efeito oposto, engendrando uma outra forma de tradição.

A partir desses dois grandes pensadores da vanguarda, Bürger e Paz, bastante se pode refletir atualmente sobre a questão. O legado das vanguardas históricas, e mesmo o das neovanguardas, é imenso, devendo ser avaliado tanto em conjunto quanto caso a caso. Repetir o gesto vanguardista hoje, como fazem alguns, sem nenhuma reavaliação crítica, seria inócuo, pois gera uma série de falsas surpresas e escândalos, que bem servem ao mercado, nada tendo de verdadeiramente contestador. Exemplo acabado seriam as pseudo manifestações vanguardistas do britânico Damien Hirst, mas isso não impede que tenha produzido alguns trabalhos de fato importantes.

Reconhecer um certo valor de experiência e de experimento ligado à produção artística contemporânea, parece-me indispensável, a fim de que tampouco se retroceda a um conceito de arte pré-moderno, que negue completamente ter acontecido algo de decisivo no século 20. O livro-evento de Bürger conta parte dessa história e é ele mesmo um documento eloqüente das inúmeras conquistas mas também dos desacertos das vanguardas.

*Professor na Universidade Federal de Juiz de Fora. Autor de Retrato desnatural (Record).