ASSINE
search button

Resenha: apesar de bom contista, André de Leones peca pela repetição

Compartilhar

Felipe Moura Brasil, JB Online

RIO - É bastante freqüente que se descrevam antologias de contos de um ou de vários autores como irregulares , tendo em vista a qualidade diferenciada dos textos. Paz na terra entre os monstros (André de Leones. Record

176 páginas, R$ 25) tem seus méritos, mas sofre do mal inverso. É regular demais. Tão regular que os personagens parecem os mesmos, as angústias as mesmas, os acontecimentos (raros) os mesmos, a mesma praça, o mesmo banco, as mesmas flores, o mesmo jardim . Ao se ver fechar o livro com um conto maior a novela Aneurisma tem-se a impressão de que o goiano André de Leones, de 28 anos, cansou de se repetir em historinhas avulsas (há, aliás, umas três pequeninas e irrelevantes, porque meros subprodutos das outras) e, finalmente, partiu para um vôo solo que tudo condensasse mas já um pouco tarde.

Tudo , no caso, é a terra de monstros do autor (vencedor do Prêmio Sesc de 2005, com o romance Hoje está um dia morto): terra de gente jovem, em maioria já assolada por uma sincera preguiça de viver, desprovida de fantasmas capazes de estimular algum desejo de compreensão de si e do mundo ( Princípio efetivo da morte: os fantasmas dão o fora. É por onde a coisa começa ), e que urina, defeca, masturba-se, transa e goza, como se buscasse o prazer possível somente por vias fisiológicas.

A indiferença diante do outro e da morte percorre o livro inteiro, seja na garçonete que serve seu próprio assassino; na menina que diz pensar em pular pela janela enquanto a mãe folheia uma revista de homens nus; no órfão que nada sente à morte do pai e só preferia estar no lugar dele; no silêncio entre dois jovens amantes cujo amigo (e amante) em comum se matou aos 16; ou no rapaz (personagem da novela) prestes a morrer, que recusa o tratamento, e vai procurar consolo no livro morto da mãe morta , enquanto o pai, não vendo como ajudar, prefere fugir e se masturbar com fotos dela.

Faltam contrapontos

É verdade que, nos três últimos casos (contos), há uma mocinha uma namorada tentando chegar até a mente do sorumbático protagonista, resgatar sua fé nas coisas, alcançá-lo de alguma forma, nem que seja, digamos, por via anal uma imagem literária, aliás, que está entre as melhores do livro, quando o sexo ganha uma significação maior do que fuga, despedida, conveniência ou excitação adolescente. Mas o esforço, tímido, fica sempre pelo caminho, condenado no máximo a um choro noturno, alheio que estão protagonistas e autor a qualquer interferência agressiva na cômoda espera do fim.

Assim como num besteirol, o excesso de humor do conjunto tira o impacto da piada incidental, a gratuidade generalizada de Paz na terra entre os monstros tira o contrapeso necessário aos silêncios e desinteresses (de seres nunca próximos o bastante ), os quais o texto, confessadamente, pretende destacar. Obcecado em enxergar uma escrotidão desgraçada em tudo e todos , todos animais , André de Leones acaba limitado ao vazio existencial de seus próprios personagens, não deixando entre eles qualquer voz narrativa que os vislumbre de fora com algum discernimento, que extraia de suas interações algo além de escatologias e sarcasmos, ou que ao menos se contraponha à inadequação geral com uma certa solidez.

Na novela final, ao analisar as imperfeições do romance publicado pela mãe cuja história de um matador prestes a morrer se confunde com a dele o protagonista aponta sua inaptidão para conhecer a fundo os personagens, e lembra: A mãe se escusava dizendo que a idéia era essa mesmo . Por inúmeras vezes (esta, inclusive), diretas ou indiretas (sobretudo pela análise do tal romance), o autor também soa como se utilizasse este recurso clássico de eximir-se, atenuar ou apenas assumir previamente a responsabilidade pelas limitações da obra, através da pura demonstração de autoconsciência isto quando não tenta explicar a obra ( Ninguém veramente interessado em ninguém , Vozes se esborrachando gratuitas em tudo que é lado ).

O que sobra

As semelhanças (não só da novela, mas de todo o livro) com as limitações da mãe são óbvias: ela só queria contar uma história , ignorava eventuais complicações , deixava um vazio em função de o cenário praticamente inexistir , tudo era provocativamente gratuito , descrevia uma rotina ancestral de tédio, amor cansado e tristeza e, no fim das contas, nenhuma epifania, apenas uma enorme e nunca verbalizada espera .

Mas o que sobra, então? Ora, sobra um escritor talentoso, com um estilo próprio, calculadamente despojado, bem ritmado, polifônico, de humor intrínseco, alguns insights divertidos (o pai que parece um frigobar, um velório bem-sucedido, adolescentes no shopping), diálogos simples e fortes, cortes envolventes (para dar um close nos seios da garçonete, para fazer uma múltipla-escolha com o leitor, para mostrar uma cena que só será entendida depois), porém prisioneiro de um universo restrito e repetido, talvez atraente para jovens leitores, mas focado em relações humanas rasas e destacadas da realidade de qualquer cidade, época, geração, informação, ou algo mais propriamente autoral, que traga a André de Leones alguma particularidade para além da forma e do estilo em si.

Para tratar, afinal, só de Pequenas criaturas ou de Secreções, excreções e desatinos, a gente já tem um Rubem Fonseca.