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Às vésperas de completar 80 anos, Francis Hime lança livro interativo que esmiúça seu processo criativo

José Peres -
Francis Hime
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Ele se formou em engenharia mas nunca exerceu a profissão. “O mundo perdeu o seu o pior engenheiro”, diverte-se. Mas o fato é que Francis Victor Walter Hime assinou alguns dos mais belos edifícios musicais da música brasileira. A 11 meses de completar 80 anos, o compositor, arranjador, pianista e cantor planeja novos trabalhos, incluindo shows, um CD de inéditas, a conclusão de mais uma peça sinfônica, o lançamento de seu mais ousado trabalho, a “Ópera do futebol”, e, ufa, a chegada de dois livros sobre sua vida e obra. Um deles está sendo escrito por sua filha Joana. O outro – já nas livrarias – disseca em pormenores todo o processo criativo envolvendo o artista. Em “Trocando em Miúdos as minhas canções” (Editora Terceiro Nome), Francis conta histórias sobre os bastidores de todas as músicas que compôs e mostra em exemplos práticos e interativos do desenvolvimento de um tema a partir de pequenas células de notas que se desdobram em harmonias bem-acabadas. No detalhe, o artista executa um trabalho de ourives, pleno em sutilezas. Mas se olharmos como um todo, trata-se de uma obra de grande porte, de um engenheiro de acordes.

A ideia de trabalhar numa prancheta vinha de longe por cota de seu gosto pela matemática. “Em 1969, eu me formei mas no dia da entrega do canudo eu estava em outro lugar. Participava de um programa musical em São Paulo. Nesse dia a ficha caiu e ficou claro que minha paixão tinha sido sempre a música”, conta Francis, que só esteve perto da engenharia civil num breve estágio, ainda no tempo de faculdade, numa companhia de estruturas metálicas.

Macaque in the trees
Francis Hime (Foto: José Peres)

Como não poderia pertencer à música alguém cuja primeira parceria foi justamente com monstro sagrado da MPB que o adotou de cara? “Num sarau na casa de Vinicius (de Moraes), mostrei a ele a melodia de um samba. Ele gostou e me pediu que deixasse gravado numa fita. Qual não foi minha alegria, meses depois, ver o Poetinha me aparecer na Churrascaria Carreta, em Ipanema, com uma letra escrita num guardanapo de papel? Era ‘Sem mais adeus’ (1962), nossa primeira parceria. Quase caí para trás”, recorda.

A partir de Vinicius, no contexto efervescente e criativo da Bossa Nova, nasciam outras parcerias com Edu Lobo e Ruy Guerra. E muitas participações em festivais. Foi num deles, em 1966, que Francis e Chico Buarque se conheceram. Mas a primeira parceria não saiu de imediato. “Mostrei a ele um samba-canção e propus a ele uma letra. Chico adorou a ideia, mas Vinicius soube da situação e, ciumento que era de seus parceiros, vetou. Minha parceria com Chico só viria a acontecer com” Atrás da porta” (1972)”, conta.

Ao contrário do que aconteceria com Vinicius que letrava melodias já prontas, Chico e Francis tinham processos variados. “Em geral, nem Chico nem eu tínhamos ideia da letra que viria… às vezes não sabíamos nem qual seria a estrutura, se a música a música teria uma parte repetida ou ser seria tocada apenas uma vez. Eram decisões que só tomávamos com a letra pronta”, explica Francis, lembrando ser este o caso de “Embarcação” (1982), uma de suas preferidas.

Macaque in the trees
Francis em 1977, com Chico Buarque e Milton Nascimento, em Três Pontas (Foto: Arquivo pessoal)

Depois desses ainda viriam Geraldo Carneiro, Milton Nascimento, Gilberto Gil, Paulo César Pinheiro, Cacaso, Capinam, Adriana Calcanhoto, Paulinho da Viola, Lenine, Joyce, Moraes Moreira, Georges Moustaki, Jay Livingston & Ray Evans, Sergio Bardotti e, obviamente, Olivia Hime. “Ela é minha parceira de música, de vida”, derrete-se o compositor no aconchegante estúdio no andar de baixo da casa praticamente encrustada aos pés do Cristo Redentor e de onde se ouve cantos de pássaros e se avista, a uma distância silenciosa, o trânsito alucinado em torno da Lagoa Rodrigo de Freitas.

“Trocando em miúdos as minhas canções” é fruto da prodigiosa memória do compositor que transita entre a música popular e a erudita com naturalidade. “À medida que ia escrevendo o livro, as composições começavam a ganhar força no relato e passei a considerar a ideia de passar para arquivos de áudio como é que se dá essa centelha da criação”, comenta Francis, que credita à Olivia a opção dos QR-codes. Esses 352 arquivos digitalizados e que podem ser lidos por smartphones levam o leitor a uma condição de ouvinte e testemunha de um instigante processo criativo.

Processos distintos

E esse processo é contado de forma detalhada ao longo dos dez capítulos do livro, que abordam a influência que a música clássica exerceu sobre o artista desde a juventude até sua aproximação com o universo do samba e da Bossa Novas, as parcerias célebres e as mais recentes, os estudos de teoria musical nos Estados Unidos, as trilhas para teatro e cinema e as músicas de concerto, tais como a “Sinfonia do Rio de Janeiro de São Sebastião” (2002) e outras peças. “São processos bem distintos. Na música popular, eu geralmente me sento ao piano e começo a dedilhar. As ideias vão surgindo naturalmente. Umas chegam prontas e outras são arquivadas para serem trabalhadas mais tarde. Já na música de concerto é preciso um planejamento prévio, pensar a estrutura. Algo parecido do que acontece com as trilhas sonoras de onde se parte um conceito preestabelecido”, define.

Compositores e criadores em geral são seres inquietos. Fraseados musicais ou pequenas células de notas os tomam de assalto e como músicos sempre ouvem música das mais variadas fontes muitas vezes a influência flui naturalmente. A estrutura melódica de “Passaredo” (1976), outra parceria com Chico, possui, segundo Francis, uma pequena sequência que remete a “Claire de lune”, de Debussy, admite Francis. “Uma peça que tocava muito em meus estudos clássicos”, recorda-se o compositor, que iniciou os estudos de piano aos seis anos de idade.

Um capítulo pitoresco da parceria entre os dois foi em “Vai Passar” (1990) que deveria ser uma criação coletiva no melhor estilos dos sambas-enredo. “Chico tinha o refrão e a primeira parte da melodia prontas. Jogamos uma pelada no campo dele na Barra e seguimos para sua casa na Gávea. Estávamos lá Chico, João Bosco, Fagner, Edu Lobo e Carlinhos Vergueiro. Estávamos nos divertindo e bebendo bastante de modo que nada criativo sairia dali. Talvez por ter bebido um pouco menos que a turma foi consegui sair de lá com uma vaga noção do que sugerir ao Chico”, lembra.

Às vésperas de completar seu 80º aniversário, em agosto do próximo ano, Francis Hime já planeja “uma série de atividades para a efeméride”. O compositor pensa num CD de canções inéditas, um novo espetáculo e a conclusão de um concerto para dois violoncelos. Mas o projeto mais ambicioso é estrear a “Ópera do futebol”, originalmente concebida para entrar em cartaz em 2014 durante a Copa do Mundo disputada no Brasil. A intenção na ocasião era montar a ópera no Teatro Municipal de São paulo sob a regência de John Neschling. “Mas tivemos algumas difi culdades com patrocínio. É um projeto muito grandioso”, explica, acrescentando que foi sondado pela direção do Museu do Futebol para retomar o projeto, pois em 2019 será celebrado os 100 anos do Sul-Americano de 1919, o primeiro título internacional da seleção brasileira.

Dividida em quatro atos e com duas horas de duração, a “Ópera do futebol” é a história de dois irmãos, fi lhos de ex-craque. Um deles segue os passos do pai. O outro enverada pelo mundo das drogas. E os dois se apaixonam pela mesma mulher. O libreto é assinado pela jornalista Silvana Gontijo. No elenco, 12 cantores líricos mais coro de 60 vozes, coro infantil, orquestra sinfônica e uma robusta seção de percussão. “É uma trilha composta com ritmos genuinamente brasileiros mesclada com árias líricas. O coro é uma torcida organizada e narra a história ao modo das tragédias gregas”, compara.

Outra peça erudita do compositor prevista para o próximo ano é fi nalização do concerto para dois cellos, composto a pedido de Jacques Morelenbaum e Hugo Pilguer. “É o projeto sobre o qual estou mais debruçado no momento. Compor concertos para um instrumento específi co que eu não domino exige uma imersão, um olhar atento sobre suas sonoridades”, argumenta. Francis gosta de lembrar quando compôs um concerto para a harpista Cristina Braga. “As notas que saíram dos primeiros estudos remetiam a Mozart e, curiosamente, eu nem gosto muito de Mozart – prefi ro os românticos -, mas funcionou”, diz.

E, além de “Trocando em miúdos as minhas canções”, um outro livro sobre o compositor está para sair. Escrito pela fi lha Joana Hime e pelo pesquisador paulista André Simões e ainda sem título defi nitivo, a obra tem como ponto de partida uma tese de mestrado de Joana, mas ganhou mais fôlego com depoimentos de parceiros e amigos de Francis. “O André veio aqui em casa umas quatro vezes para conversar comigo. Foi recomendado pelo Zuza Homem de Mello. Brinquei que ele sabe mais da minha vida do que eu mesmo”, ironiza.

Arquivo pessoal - Francis em 1977, com Chico Buarque e Milton Nascimento, em Três Pontas