ASSINE
search button

Justiça e grande justiça, para que servem?

Compartilhar

É justo que o diplomata iraniano com “imunidade diplomática” não seja indiciado pela suspeita do crime de molestar crianças em Brasília? É justo que a presidente da Argentina exproprie a Repsol sem discutir a indenização? É justo que a corte brasileira postergue o julgamento do mensalão até que prevaleça a tese de que ele não passou de “uma conspiração burguesa contra o governo popular”? O jurista dirá que a aplicação da lei não é ciência exata e contempla contextos. É verdade, mas quais os limites para que as regras sejam retorcidas? O fato é que, com tantas contextualizações, já nem se sabe se a justiça pode, de fato, cumprir seu papel constitucional como poder independente.

Claro que aqui neste espaço jornalístico não cabe definição de justiça, pelo menos ao modo dos compêndios de direito. Podemos partir do suposto consenso: a justiça é um dos fundamentos da democracia, portanto da civilização contemporânea.

Será?

Adotássemos outra perspectiva filosófica uma visão, mais ampla, surgiria. Mesmo que, às vezes, confunda-se justiça com hermenêutica jurídica o “senso do justo” inato é raro.

É conhecida a tradição do direito romano, e bem menos conhecida a do direito talmúdico. Nesta última a perspectiva da justiça não é só uma terminologia que se aproxima da ética. A justiça não é monopólio de juízes ou tribunos, religiosos ou laicos. É a justiça do dia a dia realizada e praticada pelos homens comuns. No sentido filosófico é um conceito de justiça que se aproxima da cultura e mistura caridade e  diálogo. Segundo essa hermenêutica somos apenas, quando muito, aspirantes que devem se conformar com a condição de “justos que sofrem”.  

Se justiça é termo tão cheio de significados, o que ela é e para que serve?

Na grande justiça podemos enfocar justiça como uma atitude que norteia a vida. Justiça como fundamento poético (estético também) e liberdade.

Sofremos por não ser possível aos seres humanos comuns — aqueles que não nasceram com os devidos pesos e medidas introjetados — escolherem a perfeição. Pois na santa imperfeição sofremos todos e coletivamente, exatamente porque precisamos de justiça. Justiça que não está ao nosso alcance, justiça longínqua, inaccessível, justiça que só a vida teria potencial para oferecer. Mas nem sempre a potência se torna ato. Vira e mexe, saímos dos tribunais com documentos cheios de promessas.

Como a justiça não é inata um dos papéis humanos é tentar criar, contra o senso comum, o que não é espontâneo em nossa natureza. Assim como a indução funciona num experimento científico, a prerrogativa é assumir as responsabilidades das coisas que fazemos. Só renunciando à perfeição podemos repensar nossos papéis. Buscar justiça não é só condenar criminosos, organizar delatores, postergar o direito, marchar contra a corrupção, garantir as posses ou obter ressarcimento. Devemos recuperar a grande justiça. Agir de acordo com consensos éticos, malgrado conscientes da nossa própria brutalidade, omissão e de que sempre tentamos ser mais espertos. Mesmo assim, temos o dever de recusar a rendição às debilidades e vícios moralistas. Somos obrigados a conviver com sombras internas de uma natureza indissipável. Pode ser assimilada se formos mais compreensivos diante da irreversível condição de seres intermediários.

Apenas em parte a alarmante corrupção que corre solta é explicável pela maior transparência. O jogo da atual administração está claro: abafar o que a opinião pública sente na carne. Mas isso nem funciona nem basta. O poder se perdeu e o resgate da credibilidade não é mais tarefa simples. A epidemia de violência que vivenciamos em todo o País, por exemplo, é um dos efeitos colaterais da falta de cultura da justiça lato sensu.    

Em outras palavras, será preciso recuperar, através da cultura, o sentido do justo. Noção, falsamente ingênua, presente nas várias tradições. Por acaso somos justos, sequer razoáveis, no julgamento que fazemos dos outros? Quem denuncia a denúncia de quem denuncia quem denunciou?  

É polêmico, mas temos que considerar a hipótese de que já faz tempo que o direito institucional perdeu o sentido filosófico do justo. A sociedade clama justiça como punição. Esqueceu-se do fragmento solidário que torna a justiça uma aliada do cidadão e não seu algoz. Precisamos recuperar essa outra dimensão da justiça. Isso, só isso, já produziria enorme mudanças no mundo prático e no universo político.


*Paulo Rosenbaum é médico e escritor. Autor de “A Verdade Lançada ao Solo” Editora Record.