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Execráveis tambores, explosões racistas e o mal do mundo

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Günter Grass acaba de agitar seus atabaques ao publicar no Süddeutsche Zeitung, em seguida reproduzido em outros jornais e mídias da Alemanha, um poema de quase setenta versos identificando Israel como A ameaça à paz mundial.

Ninguém duvida que o ganhador do Nobel de 1989 tenha lá motivos para expor o país hebreu e adicionar seu nome à legião infame que dá cobertura e credibilidade à intolerância que cresce pela Europa, e não só por lá. Em geral, o endosso que vem da intelligentsia – foram pálidos os poucos chiados de reação -- se oculta no discurso amparado pela retórica de esquerda. Mas o que restou da esquerda? Precisamos recuperar a memória: é verdade, houve uma esquerda.

Hoje reduzida e rendida ao anacronismo baseado quase que exclusivamente na demonização anti-imperialista e numa grandiloquência mais nostálgica que autocrítica. O apoio de intelectuais e artistas europeus ao jihadismo, por exemplo – autojustificada como contra-propaganda aos norte americanos e à direita que cresce nas urnas – não consegue sobrevida diante da análise. A racionalização sempre busca meios para justificar impulsos inconscientes. E a pulsão atual está nua: é capaz de se alinhar com qualquer rebeldia que, por exemplo, pegue em armas contra colonizadores e supostos espoliadores da nação. Por isso mesmo, estampas racistas viraram rotina. O baú de infâmias, antes lacrado, definitivamente se rompeu nas mídias e o fenômeno é mundial. Agora periodistas e articulistas continentais armam suas pistolas e disparam um tiro no próprio pé, bem no meio das redações.

O poder de persuasão dos escritores sempre foi superestimado mas quando alguém empresta sua pena à causa, seja ela qual for, precisa assumir o risco de que a obra toda inscreveu-se automaticamente no tribunal histórico, o único que julga com isenção. O problema é que Grass não está sozinho nessa perigosa vertente devidamente acomodada no manto anti-israelense. É muito mais confortável ser identificado como obstinado antagonista do Estado hebreu, que caçador de judeus.

Convenhamos, é outro status.

Ah, dizem alguns, condenar um País não é, necessariamente, atacar seu povo, a etnia ou a religião que professam os que ali habitam. Depende. Para o bem ou para o mal, Israel tem sido encaixado numa perspectiva de “pacote”, e mesmo considerando que existem um milhão e meio de cidadãos árabes-israelenses a condenação quase maciça da Mídia às ações governamentais daquele País traz sempre uma única conotação, a de se trata afinal de um “país de judeus”. Pois é essa evocação subliminar, às vezes explicitada, que confere às críticas ao País o caráter de  condenação coletiva do povo judaico.   

O conflito israelo-palestino é somente um precário e ordinário pano de fundo para a assustadora retomada, desde que os nazistas foram derrotados pelos países aliados, do mito do judeu dominador. E lá vamos nós de novo resgatar mitologias destrutivas. As projeções de estrelas de David – tradicional emblema judaico – no show de Roger Waters poderiam ser só alusões estéticas e não motivo de preocupação. Porém quem viu o show sabe que insinuações suscitadas pelas projeções não são  paranoias. Associam abertamente o emblema ao dinheiro, aos especuladores, e, portanto ao mal do mundo.              

Além disso, o socialista Gunther tem um probleminha adicional. Precisou omitir de sua biografia por décadas a militância nazista na 10ª Panzerdivision Waffen-SS, pois, como admitiu depois, isso prejudicaria sua carreira. Realmente, se os sábios de Estocolmo sabem de uma coisa dessas...

De qualquer modo, o antissemita alemão se associa ao seleto grupo de gente que o antecedeu, como o poeta fascistófilo Erza Pound e contemporâneos como Tarek Ali. Numa entrevista por aqui o paquistanês analisou seletivamente os desvios dos americanos e israelenses sem dar o menor contrapeso à belicosidade do regime iraniano – nem uma palavra! -- ou a sanha xenófoba de regimes islâmicos contra minorias cristãs e de outras etnias em vários países árabes. A desonestidade intelectual passa, necessariamente, pela seletividade com que se elegem os alvos.  

Se o Estado de Israel comete erros – e decerto os comete – eles não devem ser separados do contexto que cerca as delicadas circunstâncias em que são cometidos, ainda que, para alguns deles, não deve haver complacência. O regime dos aiatolás é um problema bem mais nocivo ao mundo, assim como o abandono do povo sírio à própria sorte deveria pesar na consciência – se houvesse uma -- dos dirigentes chineses e russos.

Uma estranha passividade hipnotizou a vida. Mas o mundo, que testemunha explosões de intolerância, rebeliões e fanatismo não está interessado em refrear o empuxo de guerra entre os povos. Parece que basta observar e a calma reina ao nomear como natural o incremento das hostilidades como “choque de civilizações”. E está na cara que a maior prova de nem termos alcançado o estatuto de civilização, será se realmente o tal choque ganhar vida.  

A história mostra que tanto omissão como resignação tem um preço, e desta vez, pode não haver mais desconto para fornecedores.

 

*Paulo Rosenbaum é médico e escritor. É autor de “A Verdade Lançada ao Solo”. (ed. Record)

paulorosenbaum.wordpress.com