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O que não se pode conjugar: a manipulação política do medo 

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Curioso que alguns verbos sejam mais difíceis de conjugar. Pode ser constrangimento ou inibição inconsciente. Com a conjugação de “morrer” e “massacrar”, está praticamente garantida omissão em alguns tempos verbais. Em “massacrar”, certeza, pularemos a primeira pessoa do singular e iremos direto para “eles massacram!”

Os infanticídios escolares mais alarmantes dos últimos anos — Toulouse, Beslan, Realengo, Virgínia e Mumbai — costuram sua unidade numa notável coerência mórbida. Sempre há uma lógica — vale dizer, uma racionalização — para qualquer tipo de atrocidade. E o bordão de imbecilidades justificacionistas parece não ter fim. Estamos em dias tão anômalos que é possível testemunhar gente afirmando, inclusive de dentro da comunidade judaica, que os mortos no Holocausto eram europeus pecadores, que crianças mortas por engano no Afeganistão eram filhas do terror e que os latino-americanos têm os carrascos políticos que merecem. 

Bem feito para todos vocês! É o grito que se ouve lá de dentro.

Nada muito novo desde que Goebbels bolou as bases do marketing político moderno. É assim que até hoje o objeto de ataque em propaganda é decidido: elege-se o que pode aparecer mais no alto no monturo, e lá vão eles. É que o departamento de criação das agências e laboratórios terroristas notaram que a ação bestial contra crianças e multidões inocentes mobiliza e ajuda na captação de recursos. Foi assim que a Al Qaeda mudou o rumo das eleições na Espanha com o ataque ao metrô de Madri em 2004. Essa é a lógica imediata da escolha de alvos cada vez mais tenros. Logo será a vez dos berçários e maternidades. 

Assim que se soube da chacina em Toulouse, e-mails jorraram nas redações dos jornais: os de solidariedade concorriam com mensagens raivosas, antissemitas e xenófobas.  

Mas, e a maioria? Onde é que se escondeu?

Precisamos pensar neste continente majoritário que escolhe silenciar. Psicanalistas e sociólogos vêm alertando para a iminente irrupção do neofascismo (camisas verdes ou vermelhas, pouco importa), e o motivo é evidente: ninguém quer interromper o jantar ou parar para avaliar o “estado da arte” que estamos legando para as próximas gerações. E não há violência gratuita! Transeuntes, banhistas e ciclistas estão sendo caçados em cima das calçadas, no mar e em vias públicas. Civis descontentes, chacinados. A violência passou a ser  uma regra entre nós. E sob o clima de anomia generalizada sentimos que não há mais chão para descer. Mortificados com a sedação da esperança, o narcótico agora se chama realidade inexorável.  Um monstro contra o qual ninguém tem mais saco para enfrentar. 

Rendidos e acostumados a tolerar tudo como está, chegamos a um estado zen maléfico. Alcançamos o raio de curvatura da passividade e medo. Diante de tantas barbáries consolidadas e da pasteurização do terror, o universo pode querer acabar logo ali desde que minha energia elétrica não seja cortada. Não há mais como lidar com o sem-sentido da jurisprudência perversa em que tudo parece estar se tornando. Escolhemos o conforto contemplativo sem interromper rotinas, e não é que o show deve só continuar, ele precisa prosseguir contando com nossa salva de palmas. Para atenuar — ninguém é de ferro — trocamos postagens sobre os infortúnios da Terra.

A ação solidária precisa ir para bem além da solidariedade virtual. O “ativismo de teclado” é mais uma semente que a corporação inercial implantou para nos convencer de que a ação cibernética desdobra-se diretamente ao real. Simplesmente, não é verdade. O que, sim, estamos aprendendo é a levar uma vida comportadinha, no cabresto que nos obriga só a olhar para a frente.  Se essa é a única alternativa, melhor seria escolher o abismo.  

É necessário criar raízes mais amplas que encontrem sentido na paz e na solidariedade. É preciso ressuscitar a utopia para que não pairem dúvidas de que a realidade é apenas mais uma invenção humana.

Que venham as metamorfoses.