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Cultura da violência e autocrítica: quando o poder deixa de ser republicano

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Quem teve a oportunidade de assistir aos recentes documentários sobre os movimentos políticos armados no Brasil no período da ditadura militar, recentemente exibidos (TV Brasil), pode perceber tanto o tom emocional como a ausência de autocrítica nos depoimentos. Faltou análise: a luta armada no Brasil foi um grave erro histórico da esquerda, e, bem instrumentalizada pela ditadura, atrasou a legitimidade social da luta pela democracia – e não a acelerou, conforme reza o culto em nichos autorreferentes.

Sim, aquelas pessoas resistiram à ditadura através da violência: “É que não víamos outra saída” – relatou um deles, voz embargada, depois de narrar os terríveis detalhes dos momentos de tortura. Pois, esse é o momento onde os caldos entornam: quando não se vê saída. É preocupante a falta de autocrítica em significativa parcela da esquerda brasileira. Talvez a autocrítica seja mesmo incompatível com a manutenção do poder. Nesse sentido, o poder passa a não ser mais um valor republicano. Vide todos os puristas que sempre acabam no limbo, enxotados e caçados pelos chefões pragmáticos.

Enquanto isso, a oposição encolhe toda vez que depara com os índices de aprovação da administração federal atual. Mas não foram os anos de estabilidade prévios, da era Itamar Franco-FHC, em boa parte responsáveis pela boa condução da economia que o governo do PT herdou e manteve? 

A grande oportunidade histórica para que a oposição testasse os limites da nossa jovem democracia foi durante o auge do escândalo do mensalão. Bateu o pânico! Temia-se mexer com o poder de Lula propondo seu afastamento nos moldes do impeachmentAlguém decidiu gritar “guerra civil”. Isso bastou. A oposição, covarde, calou-se. Pudera, também estava enroscada em seus próprios imbróglios, na arrecadação de verbas partidárias. Pois, ao calar, tanto oposição como mídia estão sendo apagadas, questão de tempo até que a borracha as desfenestre do horizonte político.

Muito perigosa essa falta de perspectiva de alternância real no poder. Vivemos sob um anacrônico nepotismo num governo cheiro de parentes, com franco aparelhamento do Estado por um único regime partidário, cosmeticamente pulverizado na chamada “base de apoio”. A autocrítica deveria partir do próprio PT que precisaria compreender – ou entende perfeitamente, e tem outros planos? – que sem oposição não há jogo democrático possível. A forma amadora e displicente com que a crise na segurança pública vem sendo tratada e a incapacidade de gerenciar o conflito de interesses no executivo corrói a governabilidade e ameaça diretamente as conquistas alcançadas desde a redemocratização do Brasil.

Crises explosivas na segurança pública – atuais e futuras – eram favas contadas. Afinal, entre as 50 cidades mais violentas no mundo oito estão no Brasil. Como esperar outra coisa? Traficantes e gente muito perigosa ainda hoje conseguem celulares nas cadeias e operam livremente lá de dentro. Que o governo se vire e assuma responsabilidades. Donos de um monstruoso superávit fiscal, que construam planos de carreira e salários para policiais, bombeiros, educadores e profissionais da saúde, junto com reformulação educacional na formação de todas essas pessoas. Dinheiro há, o que não existe são critérios justos para firmar as prioridades.

A verdade é que continuamos cultuando a violência. Com que facilidade se parte para o pau, se agride, se rouba! A polícia entra em greve, e hordas aproveitam para assassinar. Ninguém é culpado, mas há culpa. Recentemente, um dirigente do PSDB convocou a militância para “partir para cima”.  Espero que haja consenso de que não é exatamente isso que se espera de um líder. Toda confrontação fermenta intolerância e anomia. Numa cultura segregacionista como a nossa precisamos encarar os problemas como adultos e convocar a paz.    

Sonhamos com outras formas de organização da sociedade, vale dizer, uma frente suprapartidária que reunisse gente lúcida, mas que ainda não tivesse perdido as esperanças na República, gente que tenha pertinácia mas não gula pelo poder, gente que tenha ideais originais mas que não seja refém das ideologias. É delírio? Então esqueçam, mas respeitem a loucura.    

A violência é a não saída e o esgotamento de todas as formas de trato civilizado. Haim Omer, um psicólogo brasileiro-israelense da Universidade de Tel Aviv, desenvolve há décadas uma técnica psicológica de solução de conflitos, reconhecida mundialmente e já aplicada em vários países. Ela é inspirada na resistência não violenta de Gandhi. Não seria má ideia arejar um pouco a cabeça para se refrescar com boas ideias para achar as novas saídas: as que estão por aí, enferrujaram.

Que a paz esteja com as portas abertas.