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Mercadante e a revolução do ensino

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Em todos os governos, os ministérios, sendo interdependentes, se completam. O ideal seria que os ministros, cada um em sua área, tivessem os mesmos atributos de liderança, igual inteligência do mundo e semelhante postura ética. De nada nos vale um bom ministro de Planejamento técnico, se o governo tiver um ministro da Fazenda lerdo, que não incite os órgãos arrecadadores a agirem com presteza a fim de suprir o Tesouro dos recursos tributários. Dentro dessa visão geral da administração pública, e da condução política do Estado, todos os ministros se equivalem, diante da necessidade do país.            

Há, no entanto, um Ministério que supera os demais, o da Educação - porque de seu êxito depende o futuro. Nós estivemos entre os países mais atrasados do mundo no que se refere ao ensino. Até a República, a educação era privilégio exclusivo das elites oligárquicas, sobretudo nos meios rurais. Aos escravos era vedada a educação pública, e os poucos negros alfabetizados deviam esse privilégio ao humanismo de raríssimos senhores. O fim da escravidão e o trabalho assalariado não mudaram essencialmente a situação. O conhecimento, que seria a libertação dos trabalhadores pobres, significava a redução do poder dos proprietários dos engenhos e fazendas, obrigados a pagar mais a seus agregados, ou perdê-los para o êxodo rumo às cidades.             

O desenvolvimento econômico nacional que tivemos, a partir da República, está diretamente relacionado com a ampliação da rede de ensino. Temos caminhado devagar, porque o imobilismo social foi historicamente o mandamento maior das elites políticas conservadoras - como muitas delas ainda se identificam. Basta, para isso, submeter-se à paciência de examinar as ideias da senhora Kátia Abreu. Durante os quarenta anos iniciais do sistema republicano, alguma coisa mudou, mas foi muito pouca, em um ou outro estado. Nisso, e em outros aspectos da vida brasileira, a Revolução de 30 constituiu um grande avanço, com a famosa plataforma da Aliança Liberal.   

Mas – e essa é outra constatação amarga – a ampliação da rede escolar vinha sendo feita à custa da deterioração da qualidade do ensino. Isso ficou mais grave nos governos militares, e muitíssimo mais dramática nos oito anos de Fernando Henrique e Paulo Renato de Sousa, que favoreceram o aparecimento de cursos universitários privados, de péssima qualidade. Entre os absurdos, carreiras profissionais modestas foram elevadas ao nível universitário, mediante treinamento de dois ou três anos.    

Embora em alguns cursos de ciências exatas, como os de engenharia, química e física, haja ilhas de excelência no ensino particular, em direito e medicina, o descalabro tem sido espantoso. A ignorância atestada pelos exames da OAB demonstra que o ensino privado, excluídas as exceções conhecidas, se tornou uma atividade criminosa. No caso da medicina, a catástrofe é maior, porque não existem exames corporativos, como no caso do direito.

O Ministro Aloízio Mercadante começa bem, ao assumir a responsabilidade pela educação nacional. Ele identificou na alfabetização o problema maior do ensino. Embora a educação elementar seja de responsabilidade maior dos estados e municípios, cabe ao Ministério da Educação estabelecer as normas didáticas e pedagógicas. O fato é que as crianças não estão aprendendo a ler no momento certo, antes dos oito anos. Os primeiros anos da escola primária devem  ser dedicados a ensinar as criança a ler, no sentido da compreensão dialética do texto,  e a redigir, com clareza, não só ao interpretar as lições recebidas como narrar a própria experiência de vida, ou avançar no exercício da imaginação. Da mesma forma, devem, nesses mesmos anos, aprender a realizar as quatro operações básicas da aritmética, que constituem, com o alfabeto, as chaves para o entendimento do mundo.

A partir disso, tudo se torna mais fácil. Mas não podemos esperar mais vinte anos para mudar a realidade nacional. É preciso, sim, recuperar o tempo perdido, e nisso é bom reconhecer os esforços de Lula. Como todos os autodidatas, ele sabe, pelo próprio sofrimento, o que significa lutar para a aquisição de conhecimento e  enfrentar o preconceito dos “bem nascidos”  - e bem “educados”. O retirante de Garanhuns fez mais pela educação em nosso país do que todos os governos anteriores.

Em contraponto ao governo que o antecedeu, e que abandonou a universidade pública, a fim de estimular a indústria privada do ensino, Lula criou 14 conjuntos universitários federais, em seus oito anos de governo. Mesmo assim, não quebrou o recorde de Juscelino que, em seus cinco anos de mandato, criou dez universidades federais – em momento de fulgurante desenvolvimento geral do país, e de ocupação do Centro Oeste e da Amazônia Meridional.

O governo tem sabido governar, mas não consegue comunicar-se como é necessário. Lula, além das novas universidades federais, abriu 126 novoscampi de ensino superior e 214 escolas técnicas. No caso das escolas técnicas, isso não significa cumprir o plano das elites do poder, de reprodução das classes compartimentadas - que determina que os doutores devem ser filhos de doutores e os filhos dos operários, operários. As escolas técnicas podem ser, e muitas são, o primeiro e melhor passo para a formação de engenheiros.

Mercadante propõe medidas simples, como as de mudar o curriculum das escolas elementares, de forma a favorecer a alfabetização. Voltar aos educadores com a visão clara do Brasil, como foram Anísio Teixeira e Paulo Freire, ajustando  suas ideias aos recursos didáticos de nosso tempo, talvez seja o melhor caminho. Por outro lado, é preciso suprir a nossa falta de professores de excelência, contratando-os no estrangeiro, como fizemos no passado. A USP, criada com a participação de professores franceses, é um bom exemplo. Como também no passado, ao acolher os imigrantes tangidos pela crise europeia, podemos, hoje, oferecer aos professores desempregados pelas medidas recessivas naquele continente uma oportunidade em nosso país.

A universidade foi sempre uma instituição internacionalizada, como nos mostra a  História. Os grandes mestres iam de Bolonha a Cambridge na Inglaterra, passando pela Sorbonne,  Salamanca e  Praga. Mercadante falou dessa possibilidade, ao discursar em sua posse. Temos que trabalhar para que os nossos centros universitários se insiram na constelação em que se encontram essas instituições, algumas delas quase milenárias.

Estamos no caminho certo. O programa de Bolsa Família conduziu às escolas as crianças que estavam delas ausentes. O Prouni abriu a universidade aos filhos dos trabalhadores. O Enem estabelece o sistema de mérito. O envio de mais de 100 mil estudantes brasileiros a universidades estrangeiras contribuirá para o fechamento do gap tecnológico que nos separa dos países mais desenvolvidos.  Mas não devemos esquecer o grande fundamento humanístico e libertador da educação, resumido no pensamento do grande educador português que viveu entre nós e contribuiu, como poucos, para o desenvolvimento do nosso sistema educativo, Agostinho da Silva: o homem não nasceu para trabalhar, mas, sim, para criar. O que ele quis dizer é que o trabalho deve ser visto como uma expressão criadora do ser humano, e não castigo imposto pela necessidade.

Todos os ministros - voltemos ao início - são importantes e necessários, mas a missão de Mercadante é mais pesada. Dele depende o Brasil que deixaremos aos que chegam, vindos de nós.

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