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Vagas abertas para Estadistas 

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Quem ainda não sabe que o mensalão é só o topo da sujeira? Veio junto com impunidade e os escândalos mal esclarecidos de arrecadação de verbas, cuja fiação, se puxada até o fim, pode remontar à eliminação do prefeito de Santo André há dez anos.

A culpa é toda nossa. Idealizamos demais e, provavelmente, não aprendemos a lição. Passados mais de 40 anos da geração libertária de 68, ainda sonhamos com utopias e alguma decência. É que é muito tentador: e, se no lugar dos políticos típicos que ficam se justificando pelo indesculpável, tivéssemos verdadeiros estadistas? Digamos, uns 36 espalhados pelo mundo. Vá lá, dez, que mostrassem a diferença que podem fazer. Enquanto o político deveria dominar a arte de governar, o estadista não pende ao miúdo nem à satisfação de grupos privados, sectários dos partidos, consultorias, municiado por informações privilegiadas ou fisiologismo das coalizões. O estadista não se ocupa do varejo, não porque despreze os sujeitos singulares da sociedade. Pelo contrário, sabe que um Estado benévolo só sobrevive ser for bem sucedido em sua tarefa de ajudar a emancipar seus cidadãos. O Estado precisa existir para que, assegurada a liberdade, o cidadão consiga enfim viver sem Estado nem estadista. Hoje vivemos, apesar do Estado. Ou, como a velha raposa política de Minas Gerais sintetizou: “O Brasil cresce de noite, enquanto os políticos dormem”.

O estadista não se rende ao óbvio. O óbvio seduz beócios e oportunistas que vivem emplacando candidaturas e cargos para enriquecer e contemplar maiorias sem identidade, vale dizer, ninguém. O estadista pode até ter medo da impopularidade, mas sabe que só deve obediência à visão estratégica do solidário e justo. A doutrina de um estadista é a defesa – muitas vezes às custas de terrível solidão – dos direitos fundamentais da pessoa. Não importa se algum déspota qualquer o apoiou antes – quem não tem incoerências ou máculas? Sua lealdade pende ao torturado, à liberdade, nunca à censura, mesmo aquela bem disfarçada de “controle social”.

Para o estadista tanto faz se a política externa de seu país tenha sido dominada pelo pragmatismo econômico ou por doutrinas retrógradas que emulam simpatias pessoais ou afinidades ideológicas de ocasião. O estadista, sempre que possível – e por vezes trazendo até prejuízo econômico à própria República – irá usar sua voz contra a opressão das mulheres, o aviltamento das minorias e o abandono da infância.  

O político ordinário apertará a mão de qualquer um. O homem ou mulher de Estado selecionará previamente quem serão seus interlocutores e preferirá visitar prisões com dissidentes políticos em greve de fome – e ouvi-los para ver o que procede – a ser recepcionado no pátio bem maquiado com bandeirinhas aclamatórias.

O estadista comprará as brigas certas e não cederá à ambiguidade dos equívocos de tradução como desculpas para ocultar mentiras. Sim, há tortura em Cuba. Os direitos humanos são sistematicamente violados na maior parte dos países árabes, e o Ocidente faz vistas grossas com lentes especiais oriundas dos petro-derivados. No Brasil, os avanços sociais concorrem com instituições enfraquecidas graças à gula fiscal e à sobreposição do Executivo aos outros poderes. Inexiste liberdade de imprensa na China, há trabalho escravo infantil na Índia, e a Rússia infelizmente não se livrou da cultura KGB. Os europeus têm nostalgia apenas do seu colonialismo, e o capitalismo nos EUA é truculento e autofágico. A África é um continente esquecido pelo mundo, e vivemos a reciclagem de uma guerra fria pulverizada. O processo de paz no Oriente Médio – e a solução urgente de dois Estados – precisa de novos e criativos interlocutores.   

Decerto que não será com malabarismos de linguagem – como desastradamente um diplomata brasileiro tentou em recente debate – que chegaremos a algum lugar. Quando o ditador do Irã repetiu a slogan dos aitolás varrer Israel do mapa, a tradução não pode ser outra a não ser “varrer Israel do mapa”.

Chega de disfarces, gente em cima de muros e tergiversações conspiratórias. O nascimento da solução possível requer enfrentar o mal-estar, não disfarçá-lo ou comutá-lo. Não é ocultando, mas explicitando o conflito que se alcançarão mais esclarecimentos e menos guerras. O que diferencia um estadista é ser surpreendente, preferir diálogo aberto à retórica bem estudada. Se nossos governantes fossem visitar outro país em que o respeito aos direitos humanos esteja sob suspeita, ficaríamos orgulhosos e honrados de, pelo menos desta vez, defenderem o lado certo. E ele existe.