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A ideologia individualista dos políticos

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Provavelmente, os eleitores — à exceção dos experts em análise política — ficam cada vez mais confusos quando se trata de observar e avaliar a conduta pública dos governantes. Há incoerências, omissões e fusões partidárias que estão para bem além de qualquer lógica aparente. O motivo da decepção coletiva é a enorme expectativa que depositamos  neles. Eles detêm um poder com força suficiente para mudar nossas vidas, e não o exercem. Indo além dos problemas partidários — massa amorfa que se agrega e desagrega por cargos e salários — o que a maioria de nós gostaria de saber é o que os move por dentro. O que faz com que os parlamentares, por exemplo, votem contra os interesses do povo?

Aí é que está! Pensando melhor, não existe tal coisa. Quando alguém declama que “fará pelo povo”, desconfie: muito provavelmente é uma forma de não se dirigir a ninguém. O que existe de fato são interesses de cidadãos individuais, pessoas únicas ou, quando muito, forças regionais e comunitárias. Por isso mesmo é que se criou a cultura dos lobbies e grupos de pressão onde cada qual busca influir para pressionar grupos e representantes a votar desta ou daquela maneira. No caso público tudo seria legítimo e conforme às regras se não fosse um torneio pré-cooptado por forças econômicas agressivas, essas, sim, senhoras de todos os juízes.

Outrora, eram linhas de pensamento que moviam os políticos. Eram as ideologias. Este alinhamento a determinados ideários sociais e filosóficos (nada muito elaborado, já que a maioria dos parlamentares não tem nem nunca teve erudição ou perfil acadêmico) criava uma diversidade interessante, e vez por outra nascia dali um estadista. Para resumir, hoje, quando muito, para identificar determinada tendência podemos ainda identificar traços de direita/esquerda, conservador/liberal e governo/oposição. É que num mundo como o nosso, ninguém mais pode se dar ao luxo de estar atrelado a uma ideologia sistemática de pensamento. Com a extinção dos ”ismos”, e sob pena de obstruir o processo de modernização da sociedade, o político se sentiu mais livre para ser incoerente e desobrigado de qualquer compromisso com as ideias.

Entretanto, há uma ideologia que sobreviveu ao genocídio das ideias políticas: a ideologia individualista. A negociação política brasileira vai assim se tornando não só um dos maiores balcões de negócios do mundo como simboliza a completa descaracterização de qual é de fato o papel dessas pessoas que elegemos para nos representar.

Para bem além desses desvios crassos da função da arte política, feridas estão abertas. E não cicatrizam, pois há conflito de interesses.  A primeira é a questão do voto distrital — instrumento de alta eficácia para devolver o poder às comunidades, únicas e genuinamente interessadas em melhorar o ambiente na qual vivem. Há manipulação para postergar esse aperfeiçoamento vital, já que nitidamente isso enfraqueceria o poder exercido em favor de grupos anônimos. E, sem dúvida, retiraria a primazia do Executivo, único poder real no atual Estado.

A outra é a perspectiva do recallpara gente que não cumpre o que promete nas campanhas. Não, não é teoria conspiratória, mas eles todos agem ideologicamente, já que no atual status quo não precisam ter uma relação de reciprocidade com eleitores. A lealdade hoje em dia é com aqueles que fizeram o marketing político e no atendimento aos generosos depositantes das doações partidárias.  

Assim fica muito mais fácil esconder-se atrás das cifras dos votos que recebem e sentir-se desobrigados para responder para aqueles a quem deveriam representar. O que a sociedade precisa perceber é que nenhum deles quer mexer no esquema tático montado há décadas visando conservar suas conquistas. Mas há pelo menos um efeito colateral gritante nesse comportamento: o progressivo comprometimento da autonomia dos três poderes. Uma pequena síntese explica a fisiologia da corrosão e como essa autonomia não existe de fato: o Executivo nomeia os juízes da suprema corte, por sua vez é o STF quem julga os casos pendentes do Legislativo e eventuais processos contra membros do Executivo, que também contam com foro privilegiado.

Pode haver maior conflito de interesse?

A outra ferida aberta é o da proporcionalidade do sistema de representantes, que, mais uma vez, instrumentaliza o jogo de forças, lesando inclusive princípios constitucionais básicos da igualdade. Por que os representantes dos estados menos populosos devem ter mais direitos? Por que o voto de um eleitor de Roraima vale mais do que um de São Paulo ou do Rio de Janeiro?

Não é preciso ser jurista ou advogado para compreender que estados mais populosos têm, no atual esquema, grave falha de representatividade, especialmente no Senado Federal. Que o Planalto não se excite em usar a falha como argumento golpista para articular o fechamento da casa. Cabem, isso sim, reformas que corrijam mais essa distorção absurda.

A depender da ideologia individualista em curso, a única coisa garantida é a vida farta daqueles que trabalham em causa própria. Todos fazem isso. O problema é fazer isso na vida pública. E, só para usar a palavra cabotina da moda, viva asustentabilidade!