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Imunes e impunes: por que os reelegemos? 

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Se o Brasil é ainda um Estado laico e o principio de separação entre Estado e religião é operativo, qualquer análise deve passar, necessariamente, pela pergunta: no que consiste a moralidade política atual? Diante do problema levantado por Dostoiévski, “se não há um Criador, tudo seria permitido”, uma das mais comuns argumentações é que a ética pode prescindir da metafísica. Vale dizer, pode-se ser honesto, correto e politicamente elegante, sem apostar nos valores transcendentes.

Então, qual seria o norte ético? Ouve-se que devemos ser éticos porque essa é a natureza humana. Nada mais falso. A maioria não apresenta traços de fervor altruísta inato. Diante do pleno sucesso do darwinismo social veremos que os homens não nascem com desejo de ceder a vez na fila, dividir suas fortunas, ou sacrificar-se pelos irmãos. Engana-se, rouba-se, humilha-se, tripudia-se, insulta-se e locupleta-se todos os dias. Seremos ladrões potenciais à espera de oportunidades? Talvez. Queremos ganhar a qualquer preço? Certamente. Mas há uma espécie de sistema autorregulador interno que nos auxilia, e faz com que tenhamos algum poder sobre nosso desejo de supremacia. 

Renunciamos a alguns traços muito humanos para sair da barbárie e aderir ao processo civilizatório. Foi necessário domesticar o instinto predador — claro que as tradições espirituais e culturais influenciaram nesta supressão — para fazer nascer um embrião solidário, as liberdades civis, o aperfeiçoamento da democracia etc. O problema é que, abandonando o feto à própria sorte, estamos retrocedendo. Veja-se a prerrogativa jurídica chamada de “imunidade parlamentar” e “foro privilegiado”, coisa muito nossa. Além de aberração, esse sistema foi inventado para proteger quem vai cometer falta. Legitima e institucionaliza a desigualdade entre cidadãos. Há maior demonstração de “impunidade preventiva” que essa? 

Somos invadidos pela perplexidade na infindável confusão entre público e privado. É corrupção generalizada, ou aumento da transparência? Quem controla quem? Quem controlará os controladores? Como sair deste enredo vicioso, e ao mesmo tempo não cair na armadilha moralista que costuma só enxergar a falta alheia? Sim, mas é claro que a culpa nos cabe. 

Não há saída a não ser reexaminar a combalida, moribunda e insepulta palavra “ética”. Segundo o dicionário, o termo deriva etimologicamente do grego ethikós, que significa “ramo do conhecimento que estuda a conduta humana, estabelecendo os conceitos do bem e do mal, numa determinada sociedade em determinada época”.

Assim colocado, sabemos que Heróphilos (4 a.C) tinha respaldo para praticar vivissecções em prisioneiros, a posse de escravos foi defendida publicamente por Aristóteles. Para os legisladores da Santa Inquisição, os índios eram seres “desprovidos de alma” e as Leis de Nuremberg da Alemanha nazista — berço dos parâmetros arianos — foram obsequiosamente seguidas como norte moral pelo povo alemão. Assim a ética de cada época é de aterradora flexibilidade. Como o futuro nos julgará pelos critérios éticos adotados hoje?  

Além do juiz que cantou que não poderia ler os autos, agora temos o ex-novo ministro Mercadante que recentemente anunciou que “muitos morrerão pelas enchentes”. Ora, ora, parece até que combinaram, e estão todos se eximindo por antecipação. Pois alguém deveria avisá-los que é deles (já que parece não ter nenhum interesse em uma sociedade civil forte e organizada) a prerrogativa de adotar todas as medidas preventivas possíveis. Pois, se a mídia silencia, temos bem guardadas as imagens das cidades serranas e vítimas soterradas no estado do Rio.

Houvesse qualquer decoro e um parlamento móvel virasse o país do avesso, em dias uma comissão extraordinária seria criada para resolver  condições estruturais ainda deploráveis no Brasil: educação, saúde/desnutrição e segurança. Por isso mesmo, não bastam cursos de administração pública, PACs ou economia aquecida, e são insuficientes slogans ou juramentos solenes sobre programa partidários. É necessário que a vocação política seja reinventada à luz do talento para trabalhar pelos outros.

Se o Estado realmente funcionasse, ninguém mais se importaria com auxilio-camareira, ajuda-vestuário ou patrocínio-moradia. O valor dos jetons poderia ser ajustado por indexadores da Bolsa, e liberar-se-iam as informações privilegiadas com direito ao uso dos dotes premonitórios às  consultorias milionárias. Estariam permitidas aposentadorias duplas além de pensões vitalícias contemplando as castas dos três poderes. O país é tão espetacular e rico que há o suficiente para tudo isso. Mas, por favor: trabalhem. É o mínimo que se pode rogar a vossas excelências.    

* Paulo Rosenbaum, médico e escritor, é autor de 'A verdade lançada ao solo' (Ed. Record). - paulorosenbaum.wordpress.com