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Políticas de "desospitalização"

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A doença de Lula provocou uma explosão de artigos, editoriais e comentários, dentro e fora das redes sociais (poderíamos renomeá-las teias pegajosas?). As mais variadas teorias apareceram: do equacionamento para viabilizar o sistema público de saúde até quem enxergasse no sofrimento do paciente — e na espreita confessa por um  mau prognóstico — a solução política. O mérito nisso tudo, se é que houve, foi a exposição do tema: de qual atendimento de saúde a sociedade precisa?

Não importa ter ou não simpatia pelo sujeito enfermo. Na medida em que habito outro século, considero decoro e privacidade essenciais quando se trata de gente doente. Porém, não resisti em examinar levas desses artigos, especialmente os que prodigalizavam a saúde ideal, tivéssemos “hospitais de alto padrão para todos”. Penso o contrário. Estudos da Organização Mundial de Saúde (OMS) mostram que não é disso que a saúde pública do mundo precisa.  Não foi por acaso que a conferência da OMS em Alma-Ata, 1978, ex-URSS, deliberou Sobre cuidados primários em saúde. A viabilidade dos sistemas públicos de saúde no mundo depende, no longo termo, não de atendimentos, cada vez mais especializados, mas sim de processos de descentralização, de participação comunitária, valorização dos generalistas e acolhimento institucional para práticas e saberes das várias racionalidades médicas.

Precisamos mesmo é de “desospitalização”, valorizando melhor as práticas de cuidado. Ações como a política de humanização dos partos – um tanto indigesto o eufemismo “humanização” para uma prática como a medicina – o médico de família e a política nacional de práticas integrativas e complementares são algumas das ações transgovernamentais que passam afônicas pela mídia. Há carência de atenção primária à saúde, e não só, pelos diagnósticos precoces que pode oferecer, mas na ênfase em cuidado. Noção quase perdida que  renasce como perspectiva generosa em saúde.

 Como comentou Elio Gaspari em sua coluna do domingo, um laboratório em São Paulo inaugurou um serviço único no mundo: oferece ressonância magnética em plantão diuturno. Excelente? Pode ser! Mas precisamos de tantas imagens? Perguntando de outro modo: por que aqui temos mais tomógrafos que no Canadá? A resposta está numa confusão essencial que se faz entre tecnologia e padrão de excelência em saúde. A necessidade das pessoas não é prioritariamente de tecnociência sofisticada nem  hotelaria hospitalar de luxo, mas de atendimento clínico de qualidade. Há, sim, deficit de tempo para anamneses compreensivas que possam ir às minúcias de cada história clínica individual (a média mundial é de 20 segundos) e, com isso, não só evitar exames e diagnósticos em excesso mas oferecer às pessoas medicina preventiva de qualidade que ajude a evitar exatamente que se chegue aos transplantes, cirurgias complexas, terapias caríssimas, às vezes perigosas, geralmente à custa da bancarrota das famílias.

Seguindo o Idec (Instituto de defesa do Consumidor), os preços dos medicamentos no Brasil são em média “60% superiores ao maior preço na Suécia e 170% acima do mais baixo” e na média “o remédio brasileiro fica 90% mais caro que na Suécia”. Porém, não se pode dizer que a indústria farmacêutica, sensibilizada, não esteja preocupada com a saúde mental dos brasileiros; psicofármacos são oferecidos aqui em preços inferiores aos do mercado internacional. Quanta felicidade! Mesmo assim, faltam medicamentos básicos na maioria dos postos, e a saúde no Brasil ainda não se tornou assunto estratégico para o Estado (assim como a educação), a não ser para forjar slogans oportunistas durante campanhas eleitorais.

Por outro lado, nem sempre é possível atender o sujeito em um momento inicial da doença – quando a patologia é agressiva e progride célere – e então, sim, que existam bons serviços hospitalares públicos e privados na atenção terciária, que consigam acompanhar eficientemente as pessoas. Acontece exatamente o oposto: a malha de atendimento privilegia o modelo hospitalocêntrico oneroso, que pende às filas e, consequentemente, ao fracasso. Isso se disseminou pela cultura, fazendo com que as pessoas se sintam mais assistidas, não pela qualidade do cuidado que recebem mas pelo quanto se oferta em hospitais e sofisticação tecnológica. Além disso, os planos de saúde privados fizeram o favor de introduzir nova variável: o consumismo de procedimentos. Esse completo nonsense infiltrou-se também na mentalidade política. Dá mais prestígio inaugurar hospitais que manter centros de saúde e ambulatórios equipados com recursos materiais e humanos. As pessoas ficam mais maravilhadas com drogas de última geração (sem perceber o desastre potencial embutido nessas experimentações) do que com o resgate da velha relação médico-paciente.        

Vamos esquecer o ex-presidente e voltar-nos para o que realmente interessa: num país com cargas tributárias confiscatórias não são necessários novos impostos, bastaria destinar parte da verba de arrecadação já existente às estruturas que funcionam. Muitas permanecem heroicamente, mesmo contra o desejo das administrações, que só sonham com produtividade (vale dizer, número de atendidos) e impacto de grandes obras. A precariedade é proporcional aos desvios de verba e, com recursos, estrangulados, não há ação possível para os realmente dispostos a mudar a situação.

Isso já foi uma vergonha. Hoje, não há nome publicável para dizer o que é.

* Paulo Rosenbaum, médico e escritor, é autor de 'Verdade lançada ao solo' (Editora Record).   [email protected]