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Para entender a bagunça

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Alguém já pensou que talvez só façamos sentido porque  vivemos juntos? Que é o outro que nos dá o sentido de existir? Vale dizer, será que só vivemos porque outros podem nos testemunhar? Não sei. Mas sei de um sentido comum que nos une: viver como pessoas singulares.

Essa é a beleza de uma ética e de uma mudança na consciência das pessoas. Posso estar delirando – é o mais provável – mas parece que não está mais fazendo sentido viver só para si, nem viver como os outros ou conforme os outros.  Há, sim, um mistério. Talvez mais que isso, um paradoxo desafiador. Precisamos ser cada vez mais o que somos e ao mesmo tempo aprender a conviver na diversidade. A generosidade que advém da moral pregada em ensinamentos dogmáticos não pode alcançar isso: só fazemos sentido se o outro também puder fazer sentido. Admito, parece complicado. Mas perguntem-se, não seria maravilhoso?

Alguém pergunta: — Você pensa mesmo isso?

— Não, mas não me falta vontade. 

O ser humano é um horizonte ambivalente, mas foram as vivências particulares de cada um, aquelas que abriram espaço às transformações radicais em nossa era. Para compreendê-las melhor, temos que recorrer à história e, mais especificamente, aos seus efeitos. Mas a reflexão aqui não é sobre revolução tecnológica, mas sim sobre nossas biografias, que são compostas por instantes, vale dizer, instantâneos.

Somos parte de uma onda, e nela nossas micro-histórias se constroem e estão conectadas ainda que à nossa revelia. Nada a ver com links eletrônicos, mas com esse fluxo muito maior que se chama história. Arrisco-me a dizer que somos uma família que perdeu a árvore genealógica. Se alguém tiver paciência, pode rastrear e verá muito além dos nossos ancestrais imediatos, talvez chegue aos primeiros habitantes da Terra. 

 Depois da dupla derrocada neoliberalismo/comunismo e do insustentável capitalismo selvagem de Estado sem democracia praticado pela China, acredita-se que os sistemas faliram ou estão muito perto disso. Basta perguntar se, com mudanças operadas dentro de cada um,  haveria tanto excesso? Sem o consumo exagerado depararíamos com tamanha destruição da biosfera? Miséria material é miséria, mas há muitas outras. A moral dessa história talvez também não seja como já se cantou por aí “luxo para todos”. Há quem trabalhe convicto, dezoito horas por dia, e há quem reclame de jornada de quatro, mesmo cumprindo somente duas. E ainda temos categorias intermediárias entre workaholics e vagabundos. Por isso malogra sempre a idealização que sonha com equidade assim como quem baseia a vida em médias e estatísticas. As pessoas se contentam com coisas diferentes, e as necessidades são tão variáveis quanto o número de habitantes. Pouco importa se isso parece resignação ou retórica conservadora: a experiência emana da vida prática. Isso nada tem a ver com justiça social: a fome e a exclusão em que ainda vivem milhões são a cara da inércia desse nosso sistema representativo, a atual regra do jogo.

Parece certo, há um solo comum de A a Z: ninguém quer fracassar. E o fracasso não é não se ter o que se quer, mas muito mais: não saber para que se deseja o que se deseja. Este saber, só o conhecimento de si mesmo pode fornecer. Nós somos a parte que depende do todo e não são Estados, Governos ou sistemas financeiros que darão a solução. É para essa interdependência entre público e particular que devemos direcionar nosso olhar quando enxergamos as brutais oscilações do mundo. E não se pode conhecer essa força (podemos chamá-la de intersubjetividade) com as mesmas bases com que se conhece, por exemplo, a evolução das espécies.

Essa percepção poderá mostrar que qualquer sistema de organização social precisa respeitar pessoas e não coleções de votantes. A psicologia deixaria de ser um apêndice incômodo e seria usada em sua mais nobre acepção. Ajudaria as pessoas a viver melhor sob o constante e insanável “mal-estar difuso” que psiquiatras podem até chamar de depressão, mas a verdade é que não se sabe ao certo o que é, a não ser que é o desconforto de uma geração. Estamos vendo emergir algo realmente novo, que pode fazer renascer a dignidade das pessoas e facilitar o ressurgimento da totalidade e do sujeito como centro das decisões. Alguns podem opinar que analisar a política a partir da psicologia está mais para literatura do que ciência. Para mim, isso está mais para elogio que acusação.