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Ciência e tecnologia: especialistas avaliam propostas de presidenciáveis

Candidatos têm debatido amplamente novas politicas para o setor

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Os investimentos no setor de Ciências, Tecnologia e Inovação foram amplamente debatidos na última semana pelos três candidatos à Presidência da República que aparecem liderando as pesquisas de opinião no país - a presidente Dilma Rousseff (PT), a senadora Marina Silva (PSB) e o ex-governador de Minas Aécio Neves (PSDB). 

Os presidenciáveis defenderam nas suas campanhas pelos estados, mudanças na política tecnológica e na relação com o mercado internacional, enfocando a importância da área para o amplo desenvolvimento do país. O Jornal do Brasil entrevistou especialistas sobre o tema e com base nas últimas declarações dos candidatos. 

Investimentos em novas tecnologias, qualificação do trabalhador para maior produtividade e melhores salários, no desenvolvimento sustentável do país

Com o olhar voltado para a área de Urbanismo, Arquitetura e Desenvolvimento, o Mestre em Planejamento Urbano e Regional pelo IPPUR/UFRJ, Doutor em Urbanismo pelo PROURB/UFRRJ e Bauhaus Universität Weimar/Alemanha e Professor do DAU/IT/UFRRJ, Humberto Kzure-Cerquera avalia que essa equação não é muito desejada pela maioria dos setores produtivos da economia brasileira. Segundo ele, a qualificação que, há pelos menos três décadas, vem sendo exigida aos trabalhadores no país é inversamente proporcional aos salários que recebem para garantir, por um lado, a otimização do tempo de produção e, por outro, ao melhor desempenho e competitividade das empresas no mercado nacional e internacional.

"Vivemos, então, um verdadeiro dilema, uma vez que aos trabalhadores é exigida a eficiência técnica em detrimento do bem estar. E, neste caso, a política salarial é incompatível com a jornada e condições de trabalho impostas, que geram impactos de extremo desgaste à saúde do trabalhador", analisa. Ainda quanto esses aspectos, Kzure-Cerquera lembra a construção do ideário de modernização da economia industrial do passado: "tão propalada pelo fascismo e, em certa medida, discutida pela filosofia positivista de Durkheim e Comte, estudo do comportamento humano relacionado às determinações da sociedade, e/ou da produção do conhecimento científico e do consumo informacional contemporâneo revela, passo a passo, que a exacerbação de expedientes tecnológicos e atuação em 'massa' de indivíduos-técnicos cerceiam atos de reflexão e criação; uma espécie de robotização e aprisionamento do intelecto", relaciona.

O especialista considera que as novas tecnologias e a qualificação do trabalhador, em um país de economia emergente como o Brasil, tem um único propósito já conhecido por toda sociedade: "ampliar a acumulação de capital dos setores empresariais da esfera privada e, também, das empresas estatais". "Constituem, portanto, de uma ordem tecnocrata e utilitarista que enclausuram o indivíduo nas materialidades instantâneas ou padrões 'morais', fruto da doutrina técnica implantada pela pedagogia capitalista que, entre inúmeras facetas do conhecido neoliberalismo, baseia-se na propriedade privada da terra e dos meios de produção e, ainda, do conhecimento científico. 

Kzure-Cerquera explica que esse raciocínio nada mais é do que a ‘filosofia do tecnicismo’ - "que escamoteia o saber e uso da técnica como condição para situar o individuo em sociedade como marionetes do poder econômico e político, legitimado pelas forças midiáticas nefastas ou pelos próprios fantoches reacionários do ‘conservadorismo’", avalia. 

Com relação aos investimentos feitos nos últimos anos no setor pelo governo que levaram a um crescimentos nos mercados interno e externo, o professor de História Moderna e Contemporânea da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Francisco Carlos Teixeira, considera que não há retorno dessas aplicações, ainda que sejam parcas, devido o grau geral de educação do país. "Com 68% da população escolar brasileira na condição de 'analfabetismo funcional' , falar em uma solução tecnológica é idílico", avalia. Teixeira acredita que o país necessita de uma elevação do nível geral da educação do povo - "e esse é o modelo da reforma educacional de Obama", lembra o especialista. "Só a elevação do nível educacional - capacidade de ler e escrever corretamente e de raciocínio abstrato - pode potencializar os investimentos em ciência e tecnologia, evitando a criação de 'ilhas de excelência' num mar de mediocridade", destaca. Teixeira diz que , lamentavelmente, não tem encontrado no debate presidencial uma proposta nacional para a educação no Brasil.

Panorama atual do setor no Brasil

Kzure-Cerquera define o cenário tecnológico brasileiro nos dias atuais nos padrões de um país que, reconhecidamente, ampliou sua produção econômica e as políticas de inclusão social, avançou em relação às duas últimas décadas sombrias do século passado, da recessão e da inflação sem precedentes. "Tornou-se uma nação mais competitiva no mercado internacional, com destaque para os setores da indústria e do comércio", diz. No entanto, ele ressalta que apesar do país assistir à expansão de suas divisas econômicas, não tem significado que haja um equilíbrio entre o meio ambiente e à apropriação de recursos naturais como fontes produtivas, como vem alertando muitos cientistas e intelectuais brasileiros. 

"Admitem-se, neste caso, a existência de um abismo entre as universidades e os setores produtivos no que tange ao manejo de fontes renováveis. Isso só reforça o fato de que a produção acadêmico-científica das instituições de pesquisa e ensino superior no país ainda é pouco apropriada pelos setores produtivos de nossa economia", considera o especialista. Destaca, então, que o exaustivo trabalho de pesquisadores da USP e da UFRJ, por exemplo, voltados para a tecnologia de ponta nas áreas de fármacos, genética, petroquímica, energia, construção civil, entre outras, há pouca transferência para a sociedade. 

"Trata-se, no entanto, de uma resistência de muitas empresas em investir na inovação tecnológica e transferir para a sociedade o direito em usufruir das benesses conquistadas pelas descobertas científicas. No país, inegavelmente, muito se avançou nas políticas públicas para o fomento à pesquisa científica e tecnológica, incluso os intercâmbios acadêmicos de alcance internacional. Mas a apropriação desses saberes por parte das empresas apresenta-se pouco expressiva", relaciona. 

Como consequência desse processo, Kzure-Cerquera identifica uma limitação das possibilidades de expressiva parcela da sociedade em consumir, quantitativa e qualitativamente, os bens essenciais requeridos pela vida. "Contrariando a ideia que haja um apagão de recursos voltados para a inovação tecnológica e qualificação profissional, o Brasil caminha, mesmo que em passos lentos, em direção às mudanças das relações de produção e a construção da vida social mais equilibrada. E isso se deve às ações de resistência dos movimentos sociais vigorantes no país, que põe em cheque as práticas de conluio entre a esfera política e os setores econômicos.

O cientista político, professor do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal Fluminense (UFF) e pesquisador das relações entre Política e Economia, Marcus Ianoni, avalia que as políticas industriais de Lula (Política de Desenvolvimento Produtivo e Política Industrial,  Tecnológico e de Comércio Exterior) e mais recentemente da presidente Dilma Rousseff (Plano Brasil Maior) deram ênfase à inovação tecnológica e ao fortalecimento do conteúdo local. "O que foi importante. Temos ainda, no entanto, um câmbio muito valorizado, que prejudica as exportações. Precisamos combinar de um modo um pouco melhor a política macroeconômica e a política industrial", explica.

Já as consideração de Teixeira visualizam um forte recuo nos investimentos em Ciência e Tecnologia, algo em torno de 1.1% do PIB no Brasil - "enquanto nos EUA é de cerca de 2.7%", compara ele. Para o especialista, a maior parte deste percentual é, contudo, voltada para a aquisição de tecnologia e não para o desenvolvimento de tecnologias próprias. "Excetuando alguns setores, como Petrobrás, Embarer, Embrapa e poucas universidades, como Unicamp, USP e UFRJ, temos um esforço muito pequeno na área. E ao contrário dos EUA e de Israel, a empresa privada brasileira participa muito pouco dos investimentos, exigindo ações do Estado e sua distribuição de resultados, sem quaisquer investimentos próprios", analisa.

O mercado internacional como exemplo a ser seguido pelo Brasil

"O exercício da inteligência leva a crer que toda e qualquer experiência pode ser absorvida e/ou transformada em prol do bem comum. Isso não significa, portanto, incorporar modelos que se adequam bem a determinadas geografias e identidades culturais, mas que podem ser nocivas a outras", considera o especialista Kzure-Cerquera, logo quando é perguntado sobre os exemplos que o governo brasileiro pode seguir no mundo. Ele avalia ainda que o Brasil, do mundo contemporâneo e global, não precisa, necessariamente, importar exemplos para sua produção científica. Contudo, a aproximação com outras fontes de produção científica é benéfica para as demandas da vida coletiva.

"Há inúmeros pesquisadores brasileiros dedicados, por exemplo, à engenharia de produção de alimentos. Esses cientistas têm buscando a transformação de matérias-primas para atender o consumo e, também, para evitar perdas decorrentes do deslocamento entre as fontes produtivas e a comercialização dos alimentos", exemplifica ele. Acrescenta a esses dados somam ao desenvolvimento de tecnologias de armazenamento e controle de qualidade. 

"Os estudos de Stella Regina Reis da Costa, e de outros investigadores, apontam para avanços no Brasil quanto ao desenvolvimento de tecnologia e engenharia de alimentos para atingir expressivo patamar qualitativo e quantitativo, associado a um sistema de gestão articulado ao meio ambiente e à saúde. Sobre esse tipo de inovação tecnológica, a referida professora e pesquisadora dessa área sublinha, frequentemente, que é preciso inovar para que alguém possa usufruir", destaca ele como exemplo. Por outro lado, o especialista faz um alerta e diz que precisa ter cuidado com o que a sociedade pretende, quando o assunto é inovação tecnológica, principalmente do ponto de vista ético. "A bomba atômica, por exemplo, é uma demonstração de poder político e científico que marchar contrariamente à preservação da vida. Também do ponto de vista ético, o mesmo acontece com a indústria farmacêutica, que investe tempo e dinheiro em pesquisas científicas, mas que a sociedade fica longamente refém dos particulares interesses desse setor da economia capitalista", enfoca.

A produção científica, ainda na avaliação de Kzure-Cerquera, requer ética e estratégias que garantam a soberania de um país e o fortalecimento da vida social. Ele destaca que países como a Alemanha, o Canadá e o Japão, que investem em inovação tecnológica articulada à questão ambiental e social, são possibilidades concretas de expansão de parcerias com o Brasil.

Quanto a aplicação de investimentos no setor baseado nas experiência de Israel, por exemplo, Teixeira considera que pode ser oportuno, mas não exata. "Israel é altamente dependente da tecnologia e de financiamentos americanos, com grande déficit de balanço. Na verdade, a ponta do desenvolvimento tecnológico de Israel é a indústria bélica, por razões claras. A Internet, por exemplo, foi uma tecnologia, em sua origem militar. Acabar com a pesquisa militar seria o mesmo que acabar com a NASA", avalia. 

Analisando uma inspiração vinda da China, como mais um exemplo que pode ser seguido pelo futuro governo, Ianoni entra na questão de transferência de tecnologia. "A China não deixa as multinacionais entrarem em seu país sem estabelecer contrapartidas, como a de transferência de tecnologia. O país age assim pois tem um projeto nacionalista, voltado a, sobretudo, garantir o desenvolvimento do capital local", justifica ele. 

Ele acrescenta que o governo chinês tem posturas rígidas quanto ao capital estrangeiro, não oferecendo o seu mercado interno às multinacionais sem um custo para isso. "Ela impõe condições, coisas que precisaríamos fazer também se quiséssemos ter um modelo mais nacionalista, mais focado nos interesses estratégicos nacionais", compara Ianoni. 

Kzure-Cerquera lembra ainda que, a transferência de tecnologia estabelece vínculos cooperação econômica entre vários países com o firme propósito de atingir diretamente o consumidor, sem que isso possa representar de fato preocupações com o bem estar da vida social. "Mas, esse tipo de transferência também representa o quanto um país pode tornar o outro dependente de suas conquistas tecnológicas. Petróleo, remédios, armas e energia exemplificam o quanto as tecnologias que envolvem esses setores econômicos são capazes de tornar muitas nações vulneráveis aos detentores das conquistas cientificas. A transferência de tecnologia, neste caso, torna-se um artifício para estabelecer novos domínios territoriais".

Futuro

Olhando para um Brasil do futuro, Kzure-Cerquera acredita que o governo precisa investir no avanço tecnológico para garantir melhor qualidade de vida dos brasileiros e ter assegurada sua soberania. "Ainda temos muito a fazer pela garantia de qualidade na educação e cultura, na saúde e na provisão da infraestrutura plena. Não vejo com bons olhos essa corrida por destaque no ranking mundial de tecnologia. O país, com capítulos recentes da história escritos pelo regime da ditadura militar e de conflitos éticos na política e nos setores econômicos, ainda precisa se livrar dessas úlceras venéreas", avalia.

Por outro lado, ele leva em conta que o Brasil é país de surpresas e contradições, então um caminho viável pode ser construir, simultaneamente, movimentos e parcerias mais eficazes para a produção tecnológica de ponta. "Mas, isso implica, necessariamente, mudanças no campo das mentalidades políticas, econômicas e sociais. Vive-se nesse país, uma espécie de conflito entre a Política do Desejo Coletivo e a Política do Interesse Corporativo. E não pensar em espaço coletivo é atestado de estupidez. Como fazer ciência sob a égide de “bancadas” corporativas? O país precisa, sem trocadilhos, de uma varredura de séculos de atrasos para dar espaço à modernidade".

O setor e as eleições

Kzure-Cerquera recorreu às reflexões de Kant sobre as relações entre a razão e a experiência para descrever o momento de eleições presidenciais no Brasil. "Para ele [Kant], 'se a ética sem política é vazia, a política sem ética é cega'. No Brasil de hoje, assistimos a formação de verdadeiros conglomerados econômicos transnacionais que intercambiam tecnologias. Não se trata de exportar tecnologia, com a ingenuidade que os setores econômicos e políticos do país não obtiveram dividendos. Os setores brasileiros de produção de alimentos, da petroquímica ou da construção civil, por exemplo, incorporam, transformam e exportam tecnologias que fazem parte das redes de transações comerciais de alcance internacional. E neste caso, é ingênuo pensar que as empresas brasileiras que estão investindo em tecnologias estão distantes de seu proposito em lucratividade", avalia o especialista.