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Sempre é tempo do poeta Gentileza

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Leonardo Guelman, Jornal do Brasil

RIO - Os mitos se reelaboram continuamente no correr dos tempos e vão gerando em torno deles novas versões, novos entendimentos. Na semana passada, nesta mesma coluna, publicou-se um artigo intitulado A verdade sobre o mito Gentileza que, em linhas gerais, nega os sentidos poético e profético em Gentileza. Nossa abordagem poderia se voltar para cada um dos termos levantados; porém a opção adotada foi aqui a afirmação de outro entendimento.

O artigo mencionado procura trazer uma verdade absoluta sobre o mito Gentileza, como se esse pudesse ser matéria de verdade. A verdade será sempre um argumento explicativo. O mundo suscita leituras e interpretações e não verdades, principalmente na matéria que tocamos. Tudo depende dos olhos de quem vê. Mas a suposta verdade apresentada em nome de uma geração que conviveu com ele e o via nas ruas, afirma que Gentileza constitui um falso mito, e que por trás de um humanismo construído postumamente, aparece a figura inconteste do louco esquizofrênico. Em linhas gerais, o entendimento traz à cena o louco ao invés do profeta, o esquizofrênico, ao invés do poeta. Mas é bom que já se reconheça que essa visão reveladora não apresenta novidade alguma. Já à época de Gentileza esta já transcorria e para os que lhe diziam nas ruas - Ô maluco!!! , ele respondia: maluco pra te amar, louco pra te salvar .

O ceticismo sempre preferiu ver o louco no lugar do profeta, e, talvez, essa tenha sido sempre a sina do profetismo. Os profetas são loucos de Deus , e, no caso, de Gentileza, entendemos que o louco é inseparável do místico, do consolador, do revolucionário, facetas que reconhecemos na sua verve profética. Mas é preciso reconhecer que José Datrino (Gentileza), já antes de sua revelação como profeta passou por diversas internações, e, é fato que ele não permaneceu na instituição psiquiátrica. Sob esta primeira turbulência, pôde se constituir uma nova linguagem e visão de mundo que marcam a passagem do homem ao profeta, de José Datrino a Gentileza.

Não se trata, pois, de negar o louco, mas de não reconhecer nesse uma centralidade definitiva. Por isso, Gentileza transformou-se ao longo de seus 35 anos de missão profética, depurando o espírito enérgico e moralista que o marcavam no começo de suas pregações. Um profeta, em qualquer tempo, traz uma denúncia de uma crise e lança sobre esta uma alternativa. No caso de Gentileza, o episódio que lhe suscitou esta visão foi o incêndio do circo em Niterói, em 1961, quando aparecem os primeiros traços de sua poética mítica. Na época, ele criou uma modinha que dizia: a derrota de um circo queimado é um mundo representado, por que o mundo é redondo e o circo arredondado . Sacudido pelo pathos da sua revelação, Datrino acaba permanecendo quatro anos naquele local, transformando-o num jardim o Paraíso do Gentileza . Essa experiência profunda de depuração do local e de si mesmo, acabou estabelecendo a versão no imaginário popular de que ele perdera a família no circo, o que de fato não ocorreu.

A linguagem e a verve de Gentileza seguem, então, o próprio curso de sua missão. Deixando o local do circo, passa a peregrinar pelas ruas do Rio e Niterói, cabeludo, de estandarte à mão, como um hippie às avessas, a pregar os bons costumes e o moral. Quanto à mini-saia, dizia: se a saia sobe o moral desce, se a saia desce, o moral sobe . Mas, atrás da figura pitoresca mais visível à rua, se elabora um profetismo popular que não podemos deixar de reconhecer. Já em seus primeiros tempos desponta em sua verve a crítica contundente aos males do mundo na sua denúncia do Capeta-Capital, neologismo por ele criado e lançado em suas pregações: Capeta vem de origem capital, faz o diabo o demônio marginal, por esse motivo, a humanidade vive mal .

É desse primeiro momento também a expressão de sua máxima universal gentileza gera gentileza e o ensinamento das palavras por gentileza (no lugar de por favor) e agradecido (ao invés de obrigado). Quanto ao simbolismo de sua máxima, é preciso reconhecer que ele esboça uma ética (a reciprocidade da gentileza), uma teologia popular ( Deus Pai Gentileza Gera ) e uma linguagem que se faz marcar por um novo Verbo (revelado), como atestam o seu grafismo singular e a referência trinitária que suscitaria muito a dizer que se verifica nas palavras em que se acrescentam letras como em AMORRR, UNIVVERRSSO, VVVERRRDADE.

Nos anos 80, peregrinou pelo Brasil. Fez duas grandes incursões pelo Nordeste e Norte do país, aproximando-se da tradição dos beatos e dos profetas populares percorrendo Natal, Fortaleza, Juazeiro do Norte, Teresina onde também morou o interior do Piauí, e também Belém, Manaus e Rio Branco. Quantas experiências e contatos essas viagens não lhe suscitaram?

A maturidade profética de Gentileza decorre, em grande parte, dessas vivências, e se mostra com toda força em seu retorno ao Rio, quando decide deixar seus escritos de modo perene sobre as páginas de concreto do viaduto do Caju. Lá, a sua expressividade, sua denúncia e sua alternativa profética decalcam-se na entrada da cidade.

Se hoje Gentileza é acolhido na sociedade e acaba ganhando a feição de uma expressão mítica e pop, é sobretudo decorrência da sua contínua atualidade. Uma compreensão que deve nos fazer pensar sobre os modos de usar gentileza, como em outra de suas máximas Não usem problemas, não usem pobreza, usem amor e gentileza .

Independente da discussão da fatuidade a envolver a figura de Gentileza, é preciso conservar e salvaguardar o seu duplo legado. Seus escritos como um livro urbano que integram o patrimônio cultural do Rio de Janeiro e que reclamam uma maior conservação e a constante reatualização de sua ética e mensagem como patrimônio afetivo, reserva de utopia e espiritualidade em tempos de rudeza e visões austeras.

Leonardo Guelman é professor de arte da UFF.