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Juiz singular Concepção anacrônica

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Nelio Machado *, Jornal do Brasil

RIO - Juiz singular é aquele que julga sozinho a causa submetida à sua consideração. E, se essa forma de julgar segue plenamente vigente no Brasil, não o era, porém, no início do século passado, e já não se compatibiliza com as ideias do mundo moderno. Sim, porque, quando se confere a alguém o poder de decidir sozinho determinada causa, se confere um poder praticamente despótico. Sem um julgamento plural e entrechoques de opiniões diversas, acaba-se por estabelecer uma justiça cuja forma, digamos, é quase lotérica.

Já vai muito distante no tempo, entre nós, a instituição do júri, que julgava praticamente todas as causas. E, quando se tem um processo com júri, o juiz se torna muito mais um diretor da sessão de julgamento do que propriamente um partícipe da decisão. Ele limita-se a policiar a sessão, conter eventuais excessos e propor que o conselho de sentença, que é constituído por sete jurados, decida de uma forma ou de outra diante das teses postas à consideração do júri popular. E, se fizermos uma breve incursão pelo direito comparado, veremos que em qualquer país civilizado com uma democracia minimamente oxigenada não se conhece nenhum procedimento judicial semelhante ao que vige atualmente em nosso país.

E tal situação se agrava porque nos últimos anos, de 1990 em diante, o juiz singular passou a participar de maneira nova e ativa nas atividades ditas investigatórias, com práticas invasivas como interceptações telefônicas, interceptações telemáticas etc, o que, além do mais, frequentemente se dá em prazos não conformes com a lei. Não se observando a lei, sucede uma aproximação, digamos, umbilical entre o magistrado da causa, o representante do Ministério Público e a polícia, contando muitas vezes com interpretações de pessoas sem aptidão técnica para formular um juízo de valor sobre o tema.

Após participar, assim, de algo que se poderia chamar de bisbilhotice da vida alheia, o juiz é chamado a julgar um caso que ele já conhece a partir da invasão da privacidade do próprio perseguido. É possível, nessa situação, o magistrado ter as qualidades de distanciamento, isenção e neutralidade requeridas para um julgamento desinteressado e imparcial? Impossível! Já não se trata de saber se o juiz é bom ou mau. Trata-se de constatar o absurdo jurídico-psicológico que encerra a situação de um magistrado que, tendo acompanhado invasivamente, por um ou dois anos, a vida de outrem, vai julgá-lo com convicções preconcebidas em algo com todas as características de um pré-julgamento.

Nessa situação, pois, ao contrário do que se dá segundo as regras do devido processo legal, o juiz, após tanto ouvir previamente o lado acusatório, tende a ouvir menos o lado defensivo. Já é grande a sua carga de má vontade e até de animosidade contra o réu, e no julgamento deixa de haver o necessário equilíbrio de armas na balança. Ora, contrariamente a isso, todos os diplomas jurídicos internacionais assentam a presunção de inocência ou não-culpabilidade do réu e o inalienável direito seu a um processo e julgamento isentos. Poder-se-ia falar aqui de João Sem Terra na Inglaterra de 1215, da origem do Habeas Corpus na Inglaterra de 1659, da Declaração Universal dos Direitos do Homem na França de 1789, da Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948 da ONU, do Pacto de São José da Costa Rica, e de muitos mais, para confirmar a universalidade da presunção e do direito acima referidos.

Considerar-se-á, então, que as leis brasileiras precisam de reforma judiciária? Quando se fala em reforma do Judiciário, lembro uma frase do saudoso ministro Aliomar Balieiro, ex-presidente do Supremo Tribunal Federal, em que ele dizia de forma jocosa e crítica que reforma do Judiciário feita por juiz se presta, de alguma forma, a duas finalidades precípuas: diminuir os serviços e aumentar os vencimentos. Eu não chego a tanto, mas ouso dizer que ninguém gosta de abdicar de seu poder. O ditador não quer deixar de ser ditador. O déspota não quer deixar de ser déspota. Passa-se algo semelhante com relação ao juiz, ainda que menos por culpa dele do que da estrutura judicial equivocada vigente no país.

Como, então, estabelecer um julgamento justo no Brasil? Se se quer uma solução de fato eficiente, haverá que instituir um juízo plural, ou seja, com pelo menos três magistrados julgando juntos, ou com o alargamento da competência do tribunal do júri, ou, ainda, com a adoção do regime observado na Justiça Militar, em que se mesclam um juiz técnico e juízes leigos.

E, se, com efeito, por tudo quanto se vê pelo mundo, é patente que as decisões em juízo plural são mais justas e equilibradas, não se poderá dizer do juiz singular senão que é um rotundo anacronismo. E, mesmo deixando de lado não só pessoas, mas toda e qualquer avaliação casuística de situações momentosas, é evidente que a nossa atual dinâmica judicial leva às mais graves distorções. Para mudá-la, é necessária a vontade política de lutar por uma causa maior: a do direito e da realização da plena justiça.

* Nelio Machado é membro do Conselho Federal da OAB