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A universidade pública diante do moinho

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O sistema econômico vigente é inerentemente impelido à expansão. O “moinho satânico” – na ilustrativa expressão de Karl Polanyi – tritura o que está ao alcance e devolve-o em novo formato e substância.Talvez seja, diga-se de passagem, o único moinho que transforma até mesmo o vento que o põe em circulação. À semelhança do mito de Midas, tudo o que é tocado é coagido a transformar-se – não em ouro, mas em capital.

Esse plano abstrato de reflexão é válido para muitas discussões, mas o caso concreto que quero brevemente discutir nesse artigo é aquele relativo à educação e, mais especificamente, às universidades públicas no Brasil.

 A pretensa crise das universidades públicas paulistas tem suscitado discussões sobre sua inviabilidade econômica, que automaticamente remetem a análises sobre a necessidade de sua privatização ou do fim de seu caráter gratuito. Seria essa uma boa solução? O que significa transformar o ensino em mercadoria?

Tocada pelo capital, a universidade pública já está em transformação e isso não é um fenômeno novo. O financiamento privado à pesquisa, por exemplo, elege os temas e áreas funcionalmente importantes, ao passo que elimina os “inúteis” – quando não direciona, inclusive, os resultados.

Na mesma direção, a cobrança de mensalidades na universidade pública seria um brusco empurrão rumo ao moinho supracitado. E o que sairia do outro lado?

Em primeiro lugar, uma relação clientelista entre professores e alunos.Da mesma forma que a pesquisa é viesada pelos canais de financiamento, há o risco de que o ensino também o seja.Com o pagamento das mensalidades, surgiria um poder imenso de pressão e modelamento do programa de ensino. A educação sai da esfera dos direitos e, como um serviço comprado, entra naquela das mercadorias. Do ônus do pagamento decorreria a exigência de um retorno financeiro rápido, culminando em uma pressão ainda maior para a adaptação das universidades às propaladas “necessidades do mercado de trabalho”.

Esses moldes e formatos adequados ao mercado vão contra a própria essência da educação. Nas palavras de Paulo Freire: 

“A educação é um ato de coragem. Não pode temer o debate. A análise da realidade. Não pode fugir à discussão criadora, sob pena de ser uma farsa.” 

A pressão da necessidade de captar recursos junto ao público/mercado destruiria as possibilidades de debates corajosos e criativos, essenciais ao próprio avanço da ciência e de seu compromisso com a sociedade.Uma universidade que não cedesse a essa pressão correria o risco de perder alunos e, nessa nova configuração proposta, isso significaria perder a sua fonte de financiamento. A lei da concorrência por dinheiro, ou seja, pelo pagamento das taxas e mensalidades, penetraria também a universidade pública e isso inequivocamente distorceria os objetivos e alcances sociais desse ensino. Essa distorção já acontece em parte importante das universidades brasileiras e seu espraiamento para todo o sistema universitário promoveria consequências dramáticas. Gradualmente, alguns cursos ligados às artes e humanidades seriam ainda mais esvaziados, pois o cálculo relativo ao pagamento das mensalidades e à expectativa de rendimento futuro passaria longe de ser um estímulo.

Mas não é injusto que a população como um todo financie a universidade pública, mas só os filhos dos mais abastados tenham acesso a esse ensino? 

É evidente que se trata de uma tremenda injustiça! Mas é uma falácia acreditar que o único – ou o melhor – canal para lidar com essa aberração seja a cobrança de mensalidades de uma parte dos alunos. A melhoria da distribuição de renda brasileira será combatida de forma muito mais efetiva por outras vias, notadamente por políticas salariais e por uma reforma tributária. E se as parcelas mais carentes da população não têm acesso à universidade pública, a cobrança de mensalidades criaria uma barreira adicional para esses jovens, quando na verdade devem ser pensadas e implementadas políticas para a sua inclusão, por meio da ampliação das vagas e das cotas. Além disso, em um horizonte de longo prazo, o objetivo nunca pode deixar de ser a melhoria do ensino público fundamental e médio de qualidade.

A propósito, nunca é demais lembrar a tragédia ocorrida com esse ensino público básico no Brasil, que já esteve em um patamar de elevada qualidade, mas foi jogado contra o moinho durante a ditadura militar. É preciso atenção para que essa mesma tragédia não acometa o ensino superior brasileiro. Afinal, quando inserido no mercado, esse ensino superior produz cifras astronômicas, que já são objeto de detalhado estudo por parte de bancos e consultorias e já atraem massivamente o capital nacional e internacional.O arrocho salarial dos professores e servidores técnico-administrativos das universidades públicas paulistas, motivo mais imediato – mas não único – da atual greve,não deixa de ser um elemento a mais nesse perigoso e gradativo processo de deterioração do ensino público e, em decorrência, de reforço à tendência privatista no ensino superior.

Por fim, fica claro que, associadas a esses debates, devem estar as reflexões sobre o papel da universidade. Mais do que isso, sobre o papel da universidade pública. Em minha opinião, ela deve servir para pensar a sociedade em que vivemos e a que deixaremos para as próximas gerações; pensá-la, entendê-la e transformá-la em uma direção que contemple as necessidades e anseios do conjunto da população brasileira. Esse papel seria mantido com a privatização da universidade pública? Ou com o fim da gratuidade? Diante dos argumentos acima expostos, mas também de reflexões que exigiriam novos diálogos, parece-me claro que não.

Esse não é um debate que se esgotará em pouco tempo, mas perdurará enquanto o moinho estiver ativo. De toda forma, a pressão pela privatização das universidades públicas ou pela cobrança de mensalidades ressurgiu com muita força nas últimas semanas e tende a aumentar. É importante, portanto, perceber os movimentos em curso, o peso dessas propostas e as armadilhas que escondem. São propostas perigosas e que encontram eco em um contexto em que o toque de Midas é encarado como natural – ou gerador de eficiência. É necessária, portanto,uma reação igualmente forte, para impedir que a universidade pública e gratuita seja arremessada contra o moinho; afinal de contas, o objeto triturado jamais se recompõe.

* Bruno De Conti é professor do Instituto de Economia da Unicamp e pesquisador do Centro de Estudos de Conjuntura e Política Econômica (Cecon/Unicamp)