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As agências de rating, o fetiche das notas e a ditadura dos mercados

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Atribuir e receber notas configura um tremendo fetiche. Em especial, porque a nota é uma medida pretensamente objetiva, que simplifica as análises e permite comparações. Um aluno nota 10 ou um jogador nota 0 transmitem um recado de fácil compreensão e, por isso, com grande apelo. No entanto, uma análise cuidadosa exigirá, para além da nota em si, alguma investigação adicional.

Em primeiro lugar, quem deu a nota? Se foi a torcida enfurecida com a derrota de seu time, há aí um claro viés. Em segundo lugar, quais os critérios embasando a nota? Se não concordo com eles, passo a enxergar a nota de outra forma. Em terceiro lugar – e talvez o mais importante –, qual o objetivo daquela nota? Se não compartilho desses objetivos, a nota não me diz muito.

Em função desse “fetiche das notas”, o rebaixamento da nota brasileira para BBB- por parte da S&Ptem ecoado na mídia já há vários dias. Para não fugirmos do tema inevitável, mas escaparmos das armadilhas inerentes a uma análise superficial, recorramos às perguntas levantadas acima.

Para começar: quem deu essa nota? A agência de rating S&P. Uma agência sediada nos EUA e que, junto com outras duas agências (Moody’s e Fitch, curiosamente também sediadas nos EUA!), faz análises de risco de ativos. São agências privadas, remuneradas pelos agentes de mercado e, longe da neutralidade, estão imersas em conflitos de interesse de todas as ordens. Quando nos lembramos que em 2008 elas atribuíam excelentes notas ao Lehman Brothers poucas semanas antes da quebra do banco, percebemos que sua reputação e confiabilidade não são lá muito elevadas. Se houvesse uma agência para avaliar a performance dessas agências, suas notas seriam provavelmente baixas...

Segunda pergunta: quais os critérios utilizados para a definição da nota? De acordo com o comunicado da S&P, as razões do downgrade foram os receios com relação à política fiscal em um ano eleitoral, o enfraquecimento das contas externas brasileiras e as perspectivas de baixo crescimento da economia. Com relação à questão fiscal, a dívida pública brasileira sustenta-se em patamar controlado e nada exagerado para os padrões internacionais (33,3% em termos líquidos e 58,5% em termos brutos). Não à toa, os investidores estrangeiros continuam adquirindo títulos públicos brasileiros de forma massiva. Com relação às contas externas, o déficit em transações correntes efetivamente atingiu patamar incômodo, girando em torno de 3,5% do PIB; de toda forma, grande parte desse déficit vem sendo financiado por IDE e nada indica que teremos problemas de financiamento externo em um futuro próximo – sem contar o colchão de reservas internacionais que ainda possuímos. Quanto ao crescimento, aí sim temos um ponto importante, já que ele tem sido relativamente baixo nos últimos anos e também deve sê-lo em 2014 (tema tratado em minha coluna anterior). O contexto internacional de crise explica parte desse marasmo, mas é realmente necessário perseguir um crescimento maior para este e para os próximos anos. De toda forma, não é por meio do ajuste fiscal que se conseguirá um crescimento maior; pelo contrário, ele pode até frear ainda mais a economia. O que se observa, portanto, é que por trás desses critérios alegados pelas agências de rating para a avaliação de um país, há uma disputa com relação ao próprio papel do Estado na economia, ao bom e velho estilo de que o intervencionismo excessivo dever ser punido. É como se a nota fosse dada pela postura do aluno e não por seus resultados. Não por acaso, o México teve no ano passado um crescimento menor que o brasileiro, mas, com uma alegada “postura exemplar” (aos olhos do mercado), teve sua nota elevada.

Chegamos, finalmente, à última pergunta,a principal para a análise aqui proposta: qual o objetivo dessa nota? Essas agências de rating têm como função estabelecer notas que indiquem aos agentes internacionais o risco de investirem em determinados países ou ativos. E o que garante que os países nota 10 (ou AAA+) do ponto de vista da segurança que oferecem aos investidores internacionais sejam também países que busquem o bem-estar de sua população? Nada! Como indicado acima, o México acaba de ter sua nota elevada por entrar no jogo da flexibilização do mercado de trabalho e da privatização de seus recursos naturais, a despeito do risco que isso oferece à sua população.

É evidente que em um contexto de capitalismo globalizado, não podemos simplesmente ignorar os mercados financeiros. De toda forma, uma agência de rating querer pautar os debates eleitorais, o resultado das eleições e a postura do novo governo é uma distorção completa não só do bom senso, mas dos próprios princípios da democracia. Pior ainda é a tentativa de alguns analistas e de grande parte da mídia de explorar intensamente a notícia, concordando e reforçando que os objetivos do governo devem ser traçados por essas agências. O governo brasileiro deve pautar-se pelo atendimento às necessidades de sua população e, ainda que mantendo um olho nos humores do mercado financeiro internacional, deve se focar primordialmente em aspectos como emprego e distribuição de renda. No exato momento em que se cumprem 50 anos do golpe que deu início à ditadura militar, é necessário veementemente rejeitar essa nova ditadura: a ditadura dos mercados.

* Bruno De Conti é professor do Instituto de Economia da Unicamp e pesquisador do Centro de Estudos de Conjuntura e Política Econômica (Cecon/Unicamp)