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Os bestializados

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José Murilo de Carvalho atribui a Aristides Lobo, o propagandista da República, ter chamado de bestializado o povo brasileiro, por ter assistido, sem compreender, ao que se passava por ocasião da proclamação da República. O leitor sensível me desculpará, mas não vejo termo mais adequado  para os dias que correm, em que não se refunda  a República, mas, ao que parece, pretende-se leiloá-la. 

Os últimos índices do IBGE assinalam que temos, hoje, no Brasil, entre desempregados e desistentes de buscar empregos, cerca de 66 milhões de brasileiros. Número próximo, demograficamente, dos 90 milhões, população total do Brasil, quando buscávamos o tricampeonato mundial de futebol. E éramos, ao mesmo tempo, aconselhados a amar o Brasil ou deixá-lo. Hoje, menos de 50 anos depois, muitos de nós estão partindo do país, não porque deixaram de amá-lo e sim porque já não encontram aqui o Brasil que, no passado, diziam que seria o do futuro. Chegamos ao futuro e o Brasil não espelha a grandeza da pátria. Além dos 66 milhões de desempregados, o Brasil apresenta, qualquer que seja o parâmetro utilizado, um dos maiores índices de desigualdade econômica e social do mundo. O tal índice de Gini, aqui virou a Geni, codinome do povo brasileiro, que de uns tempos para cá só recebe pedrada.

Parcela majoritária de nossa classe (?) política encasquetou que a saída para os impasses em que nos encontramos se encontra numa curetagem do Estado brasileiro, sem o que continuaremos a ruminar paquidermicamente nossas mazelas. Como estamos entrando em campanha eleitoral para eleger presidente da República, governadores, senadores e deputados seria de imaginar que a sociedade estivesse em mangas de camisa a buscar melhor sorte para os nossos dias. Ledo engano. Somadas todas as intenções e preferências, os números de abstenção e de provável anulação de votos ultrapassam em muito o total dos prometidos aos candidatos a presidente. Constatação  preocupante dirá você, leitor. Nem tanto, digo eu, que não sou cético de profissão. Há, infelizmente, causas remotas e próximas para o que nos aflige. Não posso aqui abordar as remotas, pois isso nos levaria a um longo desvio pelo nosso processo colonizador, pela sociedade escravocrata que erigimos junto com nossos patriarcas, pela mão de ferro de Portugal, “nosso avozinho”(lembra do Davi Nasser?) pela nobre civilização anglo-saxônica. 

Vamos nos contentar com os três últimos anos. Em consequência de um processo de impedimento de uma presidente eleita, assumiu o poder no Brasil uma sorumbática e vampiresca geração de políticos que, diante do pote de ouro, lambuzou-se como se fosse melado. Do dia para a noite, as coisas ficaram muito rápidas no nosocômio central. Enquanto se denunciava a corrupção de alguns, outros tantos descobriam meios de levar a níveis exponenciais a ganância e o consequente lucro. Descobriram malas cheias de notas em hotéis, acompanhadas de promissórias mil de “me dá o meu aí, cara”. Simpáticos cordeirinhos, que saltitavam no jardinzinho do faz de conta da ética, se revelaram peludos lobos de galinheiros. E quase como a bubônica, essa praga se espalhou por todos os partidos políticos. Nesse Deus me acuda, espalhou-se uma Justiça  sedenta de sangue, acertando o que via e o que pensava ver. E começou um prende e solta que a sociedade não entende e fica pasma, pois até os que prendem e soltam também  não parecem entender. E o trânsito em julgado engarrafou. Ora, os lobos, profissionais da sangraria, deram um nó górdio na política. Transformaram a alcateia em centro do mundo e em torno dela rosnam estadistas de folhetim e amigos do alheio que propõem vender o país. Começaram por empobrecer os assalariados, depois  virão as privatizacões e as reformas esterilizantes. Você queria o quê? Estamos todos bestializados.

* Ex-embaixador do Brasil na Itália ([email protected])