ASSINE
search button

Revolução do dom contra o utilitarismo radicalizado

Compartilhar

Nós vivemos em um mundo em que o utilitarismo está disseminado. Não ser um convicto utilitarista é só para os fortes. Somos levados a pensar tudo o que nos rodeia a partir do auto-interesse e do cálculo utilitário. Sendo vistos como buscando o prazer e fugindo da dor, somos estimulados à maximização de resultados, tomando os demais seres como meios para nossos fins.

Tudo em nossa vida pode se tornar um objeto a ser explicado por tal racionalidade apequenada. O apelo a uma fraternidade aparece como demasiado idealista; ao mesmo tempo, torna-se factível ver a sociedade como mercado em que indivíduos egoístas concorrem por bens escassos. As pessoas, com seus corpos e carências, podem ser vistas como agindo no mercado de bens sexuais e afetivos em busca de encontros prazerosos ou de associações de interesses. As religiões podem ser vistas como empresas fornecedoras de bens mágicos e salvíficos a uma clientela disposta a cotizar sua parte no seu sustento, duração e expansão. O conhecimento pode ser julgado pela sua operacionalização, exigindo-se de cientistas um produtivismo e um valor de troca no mercado intelectual, sem compromisso com a verdade ou a ética profissional. A política pode ser explicada por uma relação dos partidos orientados para a conquista do poder e a sedução do cliente com eleitores autointeressados pagando com voto a quem o convence. Por fim, o valor das ações é julgado pelos critérios de performance, eficiência e eficácia, sendo melhor quem é bem-sucedido na formação de redes, na capitalização e na aquisição de bens tidos como geradores de bem-estar, status e/ou poder. Aos losers (perdedores) e aos invejosos é deixado um altivo “beijinho no ombro” ou, se declarada a guerra, faz-se descer “tiro, porrada e bomba”. 

Todas essas suposições estão tão presentes que são demasiado verossímeis. Olhemos para as relações, as religiões, as políticas... como não dizer que isso é o que existe de mais normal? O que antes era uma suposição abstrata da economia (o homo economicus) mostra um colonialismo que invade o mundo vivido e é assumido como fato evidente da realidade e, mesmo, da natureza humana. Inclusive, não faltam esforços pseudocientíficos para corroborá-lo de forma mitológica, quando são feitas explicações de comportamentos atuais que remontam a antepassados pré-históricos e inscrições em um código genético egoísta. Tal lógica extravasou o domínio atinente ao mercado, tornando-se uma forma de pensarmos o mundo e de concebermos nosso lugar nele. Chamemo-la de “utilitarismo radicalizado”. 

Parece que invertemos os valores nos quais convergem diferentes culturas. Em tempos d’outrora e espaços d’alhures era comum considerar inadequado que alguém reivindicasse a supremacia de seu interesse sobre valores “nobres” e “altruístas”. Defendê-los, hoje, soa como ingênuo ou cínico. Não é raro que, após uma ação dessa, vejamo-nos a refletir sobre suas razões em busca de um interesse velado, ainda que inconsciente; e, com ou sem ajuda, encontramos facilmente algum cálculo por detrás do agir. 

Falamos muito na existência de uma crise moral da qual temos sinais: fechamentos identitários e indiferença; esvaziamento do social e tolerância à injustiça; agressividade e violência difusas; esvaziamento do público e valorização de modos narcisistas ou perversos de existência; e cinismo quanto a valores. Proponho, na esteira de outros, que vejamos no “utilitarismo radicalizado” uma das razões da crise, a ser combatido em sua axiomática e em sua prática. Sugiro a possibilidade de uma “revolução do dom”, que tome por partida o “Ensaio sobre a Dádiva” (de 1925), do antropólogo Marcel Mauss, que resgatou o dom como uma das “rochas” da moral e da política. Tal revolução deve ser entendida em duplo aspecto: na teoria, como uma outra forma de explicar e compreender o mundo; e na prática, como horizonte anti-utilitário nas diferentes esferas da vida (hoje presentes ou futuras), sendo alternativo e contrário ao utilitarismo radicalizado, mas sem se opor a um utilitarismo bem compreendido. Em um artigo próximo, falarei sobre em que ela consiste e qual o seu programa teórico e prático.

* Doutor em sociologia (Iesp-Uerj) e diretor do Ateliê de Humanidades (ateliedehumanidades.com)