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O mito Nelson Mandela

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O acesso a todo personagem que se torna mito ou vórtice nunca é direto. Ou melhor, não deve ser direto. Para admitir o mito é necessário refletir que, embora esteja no centro das atenções, ele precisa ser avaliado a partir do que mobiliza no entorno. Precisa ser medido pela capacidade com que provoca e mantém ideias e ações que se expandem e gravitam, sustentadas por sua potência histórica e idealista. Antes que as cabeças criem caraminholas a respeito de quem está preparado para ser aclamado mito ou vórtice, reforço que me refiro a Nelson Rolihlahla Mandela, o Madiba, cuja trajetória, de preso político a líder histórico da África do Sul, mantém a ânima inteira e intacta, neste ano em que se comemora seu centenário de nascimento.

Fiel ao que escrevi acima, minha aproximação de Mandela não foi direta. Não foi através da política, o caminho mais óbvio. Preferi chegar a ele pela música. Miles Davis me ofereceu a rota em 1986, quando lançou “Tutu”, o álbum-tributo a Desmond Tutu, arcebispo da Igreja Anglicana da Cidade do Cabo e aliado de Mandela na luta contra o Apartheid. “Tutu”, a primeira das oito faixas do disco, é a trilha sonora da longa e penosa negociação da liberdade de Mandela, após 22 anos. O trompete lamentoso, denso, de Miles pontua isso. 

Em 1989, mais uma vez, Miles Davis aponta seu sopro na direção da África do Sul, quando lança “Amandla”. O álbum de oito faixas (“Amandla”, a música título é a sexta), soa como anunciação da liberdade de Nelson Mandela, no ano seguinte, 22 de fevereiro, aos 70 anos de idade. Ouço “Amandla” enquanto escrevo este artigo, e as notas do trompete de Miles são solares, festivas, celebram e sagram Mandela quando, de punho erguido, gritava: “Amandla!” (Poder), provocação a que todos, no seu entorno, respondiam “Awethu!” (Ao povo). 

Alcancei Nelson Mandela em 11 de fevereiro de 1990 quando, finalmente, é solto. Neste ano, às vésperas de dar posse a Fernando Collor de Mello como presidente da República, planeja-se a vinda de Mandela ao Brasil. A visita, agendada para agosto de 1991, quando de fato aconteceu, começou pelo Estado do Rio de Janeiro, governado por Leonel de Moura Brizola. “Quando vejo seus rostos tenho a sensação de estar em casa, porque a mistura da população é como a nossa. E nós damos as boas vindas a esse fato, porque a miscigenação enriquece o país”. Essa fala de Mandela, no Rio de Janeiro, é de 2 de agosto de 1991, portanto, há 27 anos. 

Mais uma vez, ainda que pisasse em terras tupiniquins, as ideias e as ações que sempre sinalizam o entorno dos mitos e dos vórtices, gravitavam sob a potência de Nelson Mandela. Nessa gira estavam juntos e misturados, o Movimento Negro que pedia afirmação para visibilidade no censo de 1991; o “Beijoqueiro” José Alves de Moura; o Brasil sob o governo Collor, tratado como um saco de gatos corrupto e impopular; o movimento “Caras Pintadas” já escolhendo as cores com que ganharia as ruas do país. 

Refletir Nelson Mandela no seu centenário de nascimento é, antes de tudo e, sobretudo, avaliar como um mito se constrói a partir da sua sensibilidade. Do equilíbrio entre tenacidade e ternura. Aí está a essência de Madiba, mas para alcançá-la é necessário observar, escutar, dialogar, respeitar as muitas voltas a que nos obriga cumprir o rito contínuo das giras... 

* Jornalista, escritor e etnomúsico