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Todos críticos, nada à crítica!

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Ser crítico tornou-se um estilo de existência. Na vida pública ou privada, o fato de sermos críticos tende a valorizar quem somos. De direita ou de esquerda, todos querem ser e se veem enquanto tais. Nossas redes sociais são animadas por dois movimentos: de um lado, mostramos que somos “bem-sucedidos”, “legais” e dispostos a compartilhar nossa intimidade com todos; de outro lado, estamos prontos para nos afirmar como pessoas críticas, fazendo denúncias e manifestando revoltas, de preferência com expressão de afetos intensos: desprezo, raiva ou ódio; emoções que, em outros tempos ou culturas, seriam vistas como impróprias de serem manifestadas em público, são hoje largamente aprovadas. Quem não fica tentado a exagerar as adjetivações, os advérbios e as exclamações nas redes sociais? Muitas vezes, fazemos isso pouco preocupados se o que repassamos corresponde à verdade ou se tem uma argumentação fundamentada. Nosso sucesso em curtidas é uma retribuição pelo empenho na entrega de nossa intimidade e na manifestação de uma criticidade automática. 

Houve um tempo em que os educadores sonhavam em formar indivíduos enciclopédicos, capazes de articular todos os saberes pertinentes e de se orientar com sabedoria. Hoje, na era da operacionalidade, propor um ideal de educação desses é arriscar-se a ser posto entre os insanos. Contudo, ironicamente, ao mesmo tempo em que a morte de tal educação é declarada, tendemos a postular o direito de emitir juízos sobre tudo, como se onicompetentes fôssemos. Certamente, isso é um sinal de democratização do acesso à fala. Mas é também expressão de certo modo de subjetividade que pode jogar contra a democracia. Nele, as opiniões tendem a possuir seu valor associado a um ideal de autenticidade do indivíduo, e não a um esforço de referência à objetividade ou a normas universais. Mais importante do que argumentar, o que se quer é lacrar. A opinião crítica vale como integração numa comunidade com a qual alguém se identifica, destacada do restante de ignorantes, conformados, opressores ou imorais. O que importa é a demarcação da distinção entre eu e outro, nós e eles, onde a identidade poderia ser supostamente assegurada. Às vezes chega-se a ver sua opinião como imprescindível para o destino da humanidade; outra vezes ela serve só para se assegurar de que se possui uma existência valorizada.

Somos todos críticos! E é por isso que nós nos suportamos cada vez menos. Poucos estão dispostos ao esforço de uma crítica bem fundamentada. Infelizmente, mesmo os que se dedicam ao trabalho intelectual abrem mão de sua responsabilidade para se juntarem à grande festa do opinatismo inflamado. Ora, realizar uma crítica não é apenas denunciar; também não é se contentar em buscar uma intenção espúria, lançar uma metralhadora de julgamentos ou expressar repúdios a cada coisa. Uma crítica não deve envolver sempre quem sou ou um ataque a quem o outro é. Ao contrário da “fulanização”, a crítica é uma interlocução de sujeitos detentores de capacidade de julgamento, exigindo uma deliberação e uma formação do juízo, por meio de discurso argumentado, sobre determinada questão.

O filósofo I. Kant definiu nossa modernidade esclarecida como a saída do humano da menoridade para a maioridade. Ela ocorre quando temos a coragem de usar, sem a direção de outros, nossa própria capacidade de pensar. Isso exige esforço, dor e incerteza; por isso é muito mais cômodo obedecer a um mestre. Preceitos e ordens em robozinhos automatizados, vídeos no youtube e memes virais podem nos acorrentar em uma menoridade, mas tornam a vida mais fácil e segura. Os mestres de hoje nos ordenam: “não raciocine, critique e compartilhe”! Se a modernidade clássica foi definida pela atividade crítica, a ponto de ser chamada de “Era da Crítica”, nosso século 21 pode se tornar o “século dos críticos sem crítica”. Para que não cheguemos a isso, cabe-nos o trabalho persistente de relembrar a potência liberadora do esclarecimento: “Sapere aude! (ouse saber!) – tenha a ousadia de fazer uso de seu próprio entendimento”.

* Doutor em Sociologia (Iesp-Uerj) e diretor do Ateliê de Humanidades (ateliedehumanidades.com)