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Desconfiada, a pátria ainda não calçou as chuteiras

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A paixão pelo futebol está no imaginário coletivo do brasileiro, e a Copa do Mundo é o momento de explosão contagiante desse fascínio. De quatro em quatro anos a pátria se põe de chuteiras, segundo o imortal cronista Nelson Rodrigues. Mas este ano foi diferente, o torcedor não mostrou disposição para calçá-las. O país se viu diante de um incômodo silêncio. Garçons, jornaleiros e motoristas de táxi, habituais interlocutores desse diálogo futebolístico, reagem com indiferença quando se fala de futebol. As ruas não foram enfeitadas, a venda de camisas, bandeiras e demais artefatos manteve-se baixa, com prejuízos para os patrocinadores e fabricantes de material esportivo.

Um fenômeno novo, diferente do que aconteceu em 1970, quando a ditadura usou descaradamente em seu proveito a conquista da seleção. E afastou uma parte da população, perseguida, presa e cerceada em seus direitos. De interpretação subjetiva e real, vários fatores contribuem para gerar esse ambiente de apatia e pessimismo, em contraposição à esperança. Entre eles está o medo de uma nova desilusão. A humilhante derrota por 7 a 1 diante da Alemanha, em 2014, ainda está muito viva no coração e na alma do torcedor. 

Tragédia comparável à de 1950, vivida no Maracanã lotado, quando o Uruguai de Obdúlio Varela impôs uma derrota histórica a uma seleção formada por craques. Liderada pelo artilheiro Ademir, ela entrou em campo, na final, favorita e já campeã. A realidade, agora, é outra. Não estamos numa ditadura, e o governo jamais demonstrou interesse por futebol. Temer até que tentou, desajeitadamente, deixando um vídeo gravado em que utilizou o clichê de “seleção canarinho” para se despedir dos jogadores. Em 1970, Médici, o ditador da vez, ia ao Maracanã para ser fotografado com um radinho de pilha no ouvido. 

A desconfiança não tem uma clara sinalização política ou ideológica, ainda que haja componentes políticos no ar, assumida por setores da esquerda, como o uso da camisa amarela, a amarelinha, tomada como símbolo dos protestos que antecederam o golpe parlamentar de 2016. Mesmo torcendo pela seleção, muitos se recusaram a vesti-la para não serem confundidos com os “coxinhas”. Preferiram usar a de cor azul, menos identificada com o confronto político. A indiferença também é fruto do desalento dos brasileiros com o país, com o desemprego e descalabro social. Sem dinheiro para pagar as contas e comprar o feijão para casa, como reunir os amigos para fazer churrasco e tomar uma cerveja? 

O desinteresse do brasileiro pela Copa na Rússia começou elevado, com um índice de 53%, o mais alto da série histórica, segundo o Datafolha. Mas de repente, começou a se formar uma onda favorável, com a abertura dos jogos e a cobertura maciça da TV e da imprensa, associadas à possibilidade inédita do hexacampeonato. Tudo indica que a adesão será conferida jogo a jogo. O empate na estreia contra a Suiça foi brochante, mas uma goleada contra a Costa Rica poderá incendiar de novo os corações.

Segundo o ensaísta e professor de Literatura da USP, José Miguel Wisnik, a seleção não é redutível ao uso político que se faça dela. Sua relação com a sociedade é pendular, envolve uma combinação de sucesso com fracasso, que se articula com a realidade do país de maneira antagônica: quando um vai bem o ouro vai mal. Se essa gangorra funcionar, a Copa do Mundo será nossa. 

Em 1970, eu estava no Regimento Sampaio, um quartel da Vila Militar, no Rio de Janeiro. Não por minha vontade, mas prisioneiro da ditadura. Em julho, houve o sequestro do embaixador alemão von Holleben. Éramos dez presos na cela, e as represálias foram as mesmas de sempre. Toda vez que a esquerda dava um golpe fora, sofríamos represálias lá dentro. Cortaram tudo, das visitas à entrada de livros e as quentinhas para reforçar o bandejão servido no quartel.

Minha lembrança daquele momento está muito associada à Copa do Mundo ganha no México. E nos radinhos de pilha dos soldados, que encostados nas grades da cela, aumentavam o volume para que ouvíssemos os gritos dos narradores. Como castigo éramos obrigados a ouvir a repetição infindável daquela marchinha triunfante: “Pra Frente Brasil, de repente é aquela corrente pra frente, todo o Brasil deu a mão”. 

Irritante. Não tínhamos a menor disposição de participar de uma corrente pra frente. Ali, batidos, assistimos impotentes à ditadura aproveitar politicamente aquele momento favorável de crescimento econômico, época do falso milagre, satisfação da classe média e vitória da seleção. Torcemos estoicamente pela seleção de Garrincha, Gérson, Rivelino, Tostão, Pelé e Jairzinho. A gangorra funcionou. Ganhamos a Copa, contra a ditadura do “ame-o ou deixe-o”.

* Jornalista e escritor