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A lei do faz de conta

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Na última semana, nos dois extremos do continente, parlamentares comprometidos com a liberdade e com os direitos civis deram passos gigantescos em direção ao século 21 — esse presente que ainda, paradoxalmente, está longe de nós —, enfrentando preconceitos, desinformação e poderosos lobbies. 

No extremo sul, a Argentina, que anos atrás celebrou o primeiro casamento gay da América Latina, aprovou na Câmara dos Deputados a legalização do aborto, nas primeiras 14 semanas de gestação, e sua gratuidade no sistema público de saúde. No extremo norte, no Canadá, um dos primeiros países a reconhecer o casamento civil igualitário, a Câmara dos Deputados aprovou a legalização da maconha para fins medicinais e recreativos e a regulamentação do seu comércio e autocultivo. O Senado já tinha aprovado a lei, mas terá que fazer a última revisão, porque os deputados fizeram emendas ao texto original.

Ambos países pretendem acabar com a legislação hipócrita e fracassada do “faz de conta”, que ainda vigora no Brasil, sustentada pelas bancadas do boi, da bala e da Bíblia, em acordo com a ultradireita e os partidos fisiológicos. 

A lei do faz de conta diz que o aborto é proibido, como se isso impedisse sua prática. Contudo, a cada ano, milhares de mulheres abortam na clandestinidade, e todos sabemos disso. As que podem pagar, fazem em boas clínicas particulares. Já as mais pobres, desesperadas e sem a proteção da saúde pública, recorrem a métodos caseiros ou a pessoas que praticam abortos de formas inseguras e perigosas. E milhares morrem. Nos países onde o aborto é legal não há mais abortos do que naqueles onde a lei os proíbe (de fato, na maioria dos casos, o número se reduz após a legalização), mas a morte de mulheres por abortos clandestinos, uma das principais causas de mortalidade materna, cai a números próximos do zero. No Brasil são milhares. Os defensores do faz de conta, contudo, dizem ser “a favor da vida”.

A lei do faz de conta também diz que a comercialização e o consumo de maconha estão proibidos, mas todos sabemos que a maconha continua sendo vendida e consumida. Qualquer pessoa que quiser fumar um baseado sabe onde e com quem comprar. Mas essa hipocrisia institucionalizada produz problemas infinitamente mais graves que o consumo de maconha: guerras de facções, territórios militarizados, milhares de mortos e presos, superlotação carcerária, corrupção e brutalidade policiais, insegurança. E a maconha continua sendo vendida, inclusive a crianças, porque boca de fumo ilegal não tem restrições de idade, e sem pagar impostos.

Em ambos os casos, a lei do faz de conta não cumpre sua promessa (não evita os abortos nem o comércio de maconha) e provoca prejuízos enormes à sociedade, que podemos medir, principalmente, em número de mortes. É o fracasso da hipocrisia, mas a maioria dos políticos, mesmo sabendo que não servem, se recusam a mudar. Irresponsabilidade.

Sou autor de dois projetos de lei para fazer essa mudança: o PL 882/2015, que legaliza o aborto seguro e estabelece políticas públicas para prevenir a gravidez indesejada e garantir os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres; e o PL 7270/2014, que legaliza e regulamenta a produção, comercialização e o autocultivo da maconha e propõe mudanças radicais na política de drogas. São projetos sérios, elaborados com a ajuda dos melhores especialistas e dos movimentos sociais e inspirados nas melhores experiências dos países mais desenvolvidos.

No extremo norte e no sul do continente, dois países com diferentes línguas e culturas nos mostraram o caminho que a maioria do nosso Congresso se recusa a percorrer. Ainda estamos a tempo de não perder o bonde da história! Que aqui também seja lei!

* Deputado federal (PSOL-RJ)