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Policial sem cidadania

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Já estamos cansados de ouvir que a Polícia Militar do Rio de Janeiro é a que mais mata e a que mais morre. Em sua maioria, são homens negros e pobres matando homens negros e pobres. Até quando iremos lidar com essa estatística sem fazer esforço para mudar?

A Associação de Ativos, Inativos, Pensionistas das Polícias Militares, Brigadas Militares e Corpos de Bombeiros Militares do Brasil (Assinap) sempre se posicionou publicamente de forma crítica perante os desacertos do Estado ante suas instituições militares. Nosso objetivo sempre foi e será lutar por instituições militares justas e saudáveis, e, acima de tudo, defender o policial, o bombeiro e suas famílias, pois entendemos o agente da segurança como integrante da classe trabalhadora, com direitos e deveres.

O Brasil é também o país das Américas onde mais se matam defensores dos Direitos Humanos, segundo a Anistia Internacional. Como tornar a polícia mais eficiente e consciente do seu papel? A mudança tem que começar dentro da própria Academia Militar, durante a formação policial. Junto com o bombeiro, o policial é um profissional que só pode ser formado pelo Estado. Porém, já não é de hoje que a PM tornou-se fábrica de loucos e lesionados. Segundo dados da própria PM, dos 44.118 policiais da ativa, apenas 26.227 estão aptos a desempenhar funções operacionais, ou seja, um número próximo à metade de todo efetivo pode operar em atividade-fim. Todo restante está em funções burocráticas, trabalho interno ou à disposição de autoridades. Dentro desse número, quase 4 mil policiais estão afastados por problemas psiquiátricos ou físicos. 

Afora esse dado absurdo, a estrutura médico-hospitalar da PM também deixa a desejar, não sendo capaz de atender a contento a família militar. Inúmeros são os policiais que esperam há meses uma cirurgia ou que precisam chegar de madrugada para conseguir marcar consulta. O Fundo de Saúde da PM (Fuspom) continua uma caixa-preta e ninguém sabe ao certo de quanto é a arrecadação nem como os recursos são geridos. Recentemente surgiram denúncias de má-gestão com alguns oficiais sendo investigados. Mas, até agora, nem o Tribunal de Contas do Estado nem o Ministério Público se pronunciaram a respeito.

A PM encontra-se num cenário constrangedor. A população perdeu a confiança no policial e, dentro da própria instituição, esse importante agente da segurança pública não se sente valorizado nem lhe são dadas as condições para trabalhar. Enquanto o mau policial encontra terreno fértil para seus atos, o bom policial continua mal pago, desmotivado e sem condições de trabalho adequadas.

São muitas e justificadas as críticas sobre a abordagem policial, outro mal decorrente do treinamento insuficiente e tratamento desumanizado a que o policial é submetido com jornadas estafantes e falta de acompanhamento psicológico, de acordo com a alta carga de stress que enfrenta cotidianamente. A PM se comporta de forma extremamente machista, homofóbica e racista, desrespeitando frequentemente pessoas da periferia ou pela cor da pele, orientação sexual, gênero ou pela forma como está vestido, sendo inúmeros os casos de abuso de autoridade, assédio, maus-tratos e descompromisso.

As condições de trabalho são péssimas e ferem a Constituição Federal. Além da escala determinada por cada batalhão, em que o policial pode cumprir 240 horas de trabalho mensais, agora ele também é obrigado a cumprir compulsoriamente o RAS (Regime Adicional de Serviço), rareando mais ainda os momentos de folga. A escala é determinada ao gosto do comandante, deixando o trabalho policial próximo ao da escravidão. O RAS, aliás, poderia ser perfeitamente cumprido com a contratação de inativos, já que é um serviço que não necessita do fardamento da PM e está amparado por lei. Muitos inativos estão dispostos a isso de forma voluntária. 

De suma importância, ainda, é rever o Regulamento Disciplinar da PM e do BM, documento que torna o policial e o bombeiro militares em cidadãos sem direitos, de segunda categoria. Mudar o regulamento é o início da desmilitarização para deixar de dar carta branca a desmandos de oficiais perante os praças. Os recrutas terão seus direitos respeitados e serão preparados para respeitar os direitos dos cidadãos, podendo ter a liberdade para se expressar e exigir condições dignas de trabalho. Com a reforma desse regulamento arcaico e autoritário, os profissionais não serão mais submetidos à Justiça Militar nem a punições descabidas, como prisão por atraso. Segundo a pesquisa “Opinião dos Policiais Brasileiros sobre Reformas e Modernização da Segurança Pública”, realizada em 2014 pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública e Fundação Getúlio Vargas, 76% dos policiais querem se desvincular do Exército e 93% querem a modernização dos regimentos e códigos disciplinares de modo a adequá-los à CF de 1988; 86% querem o direito à sindicalização e de greve. Está claro que esses profissionais não estão satisfeitos com esse regimento despótico e arbitrário. Quem é contra a mudança do Regulamento Disciplinar ou a desmilitarização não são os policiais que de fato atuam nas ruas, mas uma parte dos oficiais, enfurnados em seus gabinetes. 

Queremos uma polícia treinada para a proteção dos direitos e promoção da cidadania. A valorização do policial e do bombeiro obviamente se dá pelo salário, mas também com treinamento adequado e, principalmente, com profissionais que possuam direitos, e não apenas deveres.

* Presidente da Assinap