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A falência cívica do Rio

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O assassinato da Vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes e a grande probabilidade de que o crime tenha sido tramado pela sinistra articulação entre política e milícia, que se alastra na cidade e na região metropolitana do Rio de Janeiro. 

A malfadada intervenção federal na segurança pública do estado, que é, na verdade, uma intervenção militar e que, além de não dar resposta à situação a que se propunha resolver, reduziu a pó a já quase completa ausência de transparência do processo decisório no setor, desarticulando os frágeis mecanismos de controle social até então existentes. O fato de se ter um governador fantasma e um prefeito omisso, além da grave crise econômica, política e social, que é nacional, mas que atinge a cidade de forma particularmente aguda. 

Tudo isso concorre para criar e cristalizar uma conjuntura no Rio de Janeiro, cuja característica mais marcante é a do abandono do pacto mínimo de solidariedade entre diferentes grupos sociais, indispensável à existência de qualquer cidade. Tal configuração atinge em cheio a classe média, fiadora histórica das cidades modernas, que no Rio de Janeiro dá evidentes sinais de que mergulha em completo embotamento político, recuando a um individualismo embrutecido e mostrando-se disposta a chancelar a sua autossegregação e a segregação das classes populares. 

Boa evidência disso se viu em concorrida audiência pública organizada para discutir o destino de um terreno de grandes proporções, há muito desocupado e localizado em um bairro de classe média alta da Zona Sul da cidade. Naquele mesmo dia, a população da Rocinha, contígua ao bairro – mas ao que tudo indica fora do mapa mental de seus moradores – vivera mais um dia de intensos tiroteios provocados por incursões policiais. Após conhecerem o projeto – um empreendimento comercial e residencial para classe média alta, que pretende servir também como área de lazer para o bairro – a audiência se comprazia em discordar sobre alguns de seus detalhes, tais como a segurança da trilha ecológica que se pretende fazer na encosta do terreno, ou seu impacto sobre o trânsito, ou ainda sobre a localização do ponto de ônibus situado em frente ao terreno. Houve também que propusesse que o espaço simplesmente fosse apropriado para abrigar artistas plásticos do bairro. Em meio aos debates acalorados, uma mulher, nitidamente contrariada com o absurdo da cena, ensaiou palavras de protesto, tentando lembrar que o destino daquele terreno interessava à cidade e não apenas aos seus vizinhos mais imediatos. Embora contundentes, suas palavras sequer foram decodificadas pela audiência anestesiada.

Não é de hoje que o Rio vive sob o risco da ruptura do pacto citadino entre diferentes grupos sociais, e não seria exagero afirmar que boa parte de sua melhor energia cultural e política resulta da reação a esse risco. Mas o quadro se tornou mais complexo, e até mesmo o que poderia ser uma saudável audiência pública de moradores de um bairro, exercendo seu direito democrático de debater sobre um empreendimento imobiliário, revela-se um teatro da degradação cívica da cidade. É de se imaginar o que teria acontecido se alguém, sob o efeito das cinzas ainda quentes da tragédia com o prédio ocupado do Largo do Paissandu, em São Paulo, e inspirando-se em medidas análogas adotadas nas grandes cidades europeias, ou talvez na iniciativa da Igreja Católica, com a implantação da Cruzada São Sebastião no Leblon, ousasse propor que o amplo terreno desocupado fosse aproveitado para a construção de habitações populares, como forma de promover a mistura social no bairro. Com toda a certeza seria fortemente vaiado e talvez até mesmo convidado a se retirar do recinto, sob a acusação de provocador.

Em um quadro como esse, não há como se evitar o receio de que a situação se agrave, instituindo-se a barbárie como um modo de vida, com tudo o que isso significa, ao fazer do medo, desconfiança, ódio, indiferença e desprezo pelo outro que não se conhece, e da lei do mais forte, as razões últimas do comportamento de seus moradores. Mas diante desse quadro também passa a ser irresponsável o silêncio e a inércia. É preciso reagir, e o caminho passa necessariamente pela valorização da energia cívica do que ainda resta de elementos de cidade, conclamando para o debate público as universidades, escolas, movimentos sociais, associações de bairro e de favelas, associações profissionais, além, é claro, de lideranças políticas com histórico de compromisso com a cidade. Exemplos de experiências exitosas desse tipo de mobilização não nos faltam, inclusive aquela que se seguiu à falência da Prefeitura do Rio em 1988. O fato é que, mais uma vez, o Rio terá que se reinventar ou então deixará de ser uma cidade, tornando-se um arquipélago de condomínios e prédios cercados e blindados, e de favelas e de bairros suburbanos dominados por milícias.

* Professor de Sociologia da PUC-RJ