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Minha lista tem 12 mortos, dois deles desaparecidos

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Agora ficou claro o tratamento ao se dirigir ao senhor, ditador Ernesto Geisel. Nunca duvidamos, mas havia uma cerimônia com os títulos de ex-presidente e general. Imagino que a seu lado, onde quer que se encontrem, após as revelações da CIA, seus parceiros Emílio Médici e João Figueiredo devem estar saudando seu ingresso no grupo. No paraíso não será. Mais provável que estejam no nono círculo da Divina Comédia, o mais terrível do Inferno de Dante Alighieri. Fiquei em dúvida se lhe enviava e-mail ou carta. Optei pela carta, uma vez que a vigilância interna do círculo não permite a entrada de eletrônicos para uso dos desterrados. 

A essa altura, decorridos quase 50 anos, o senhor já deveria estar pensando que fosse passar à História oficial como o responsável pela abertura política. Aquele general de formação luterana, oficial prussiano que aparecia de óculos escuros com uma imagem severa. Que não sujou as mãos de sangue. Balela criada pelos órgãos de informação e inteligência e disseminada pela imprensa e livros de historiadores que acreditaram na lenda. Graças ao trabalho do pesquisador Matias Spektor, da FGV, a verdade foi revelada. Verdade que as comissões instituídas pelo Estado não conseguiram alcançar inteiramente, apesar das centenas de depoimentos dos sobreviventes, devido ao sistemático bloqueio do Exército, detentor das informações oficiais.

E, para sua surpresa, a traição veio da CIA, agência aliada do golpe que derrubou Jango Goulart em 1964. Por um memorando feito por seu ex-diretor William Colby, em 11 de abril de 1974, enviado ao então secretário de Estado Henrry Kissinger, mentor do golpe que derrubou Allende no Chile. Kissinger foi prêmio Nobel da Paz, talvez o maior equívoco da academia sueca. No relatório, o senhor é descrito como tendo aprovado o assassinato de 104 opositores políticos na gestão de seu antecessor Médici e autorizado o prosseguimento da política de assassinatos seletivos. Mais 89 morreram ou desapareceram a partir de abril de 1974, até o fim de sua ditadura.

A agência americana de espionagem e assassinatos, também seletivos, documenta que a política de extermínio vinha de cima, do palácio do governo, era uma politica de Estado. Até aqui havia se formado um falso consenso de que responsabilidade pela barbárie recaíra nos ombros de Garrastazu Médici, o general impassível que autorizava as execuções nas reuniões do palácio e ia tranquilamente para o Maracanã assistir a jogos de futebol com um radinho de pilhas no ouvido. João Baptista Figueredo, o terceiro membro do tenebroso trio, posava para os fotógrafos de sunga fazendo exercícios físicos e dava bom dia para seus cavalos.

Quem acreditou na fantasia das mortes nos chamados porões, o fez por ingenuidade ou cumplicidade, como a “Folha de S.Paulo” da “ditabranda” ou “O Globo”, do apoio incondicional ao golpe. Instalações militares da Marinha, Exército e Aeronáutica foram usadas como centros de tortura. O quartel do 1º Batalhão da PE, na Tijuca, Rio de Janeiro, foi transformado na sede do DOI-Codi, onde foi assassinado o deputado Rubens Paiva, entre outros. Cínica piada chamar de porão um quartel. Desse vasto universo de crimes, seus sucessores no Exército jamais deram satisfações à sociedade ou se desculparam pelas graves violações de direitos humanos. Ao contrário, zeram uma lei em que se autoanistiaram.

Tenho aqui comigo uma pequena lista de nomes para lhe apresentar. Uma lista de amigos e amigas que perdi, que ficaram na estrada, alguns dos quais estão na dedicatória de meu livro “Tirando o capuz”. Pessoalmente, vou deixar as horas de choques e pau de arara que sofri no DOI-Codi depositadas no limiar entre o pesadelo e a irrealidade, mas não posso me calar diante de tantas ÁLVARO CALDAS* vidas tiradas. A Comissão Nacional da Verdade lista 434 nomes.

Responsabilizo-o, direta ou indiretamente, pelos assassinatos desses amigos, cujos rostos familiares não esqueço. Se for o caso, consulte seu chefe da Casa Civil, general Golbery do Couto Silva, o “feiticeiro”, e divida a culpa com Médici e Figueiredo.

Vamos a eles. Mário Alves Vieira, o mais velho da turma na época, 46 anos, continua desaparecido. Os demais, estudantes: Fernando Augusto da Fonseca, o Sandália; Lincoln Bicalho Roque; Luiz Alberto Sá e Benevides, o Bebeto; Sylvio Renan de Medeiros; Vera Sílvia Magalhães; Raimundo Teixeira Mendes; Alcir Henrique da Costa; Cláudio Câmara e Vinicius Caldeira Brant. Incluo mais dois, que se não foram amigos, andaram por perto, Inês Etienne Romeu e Carlos Alberto Soares de Freitas, também desaparecido. Nenhum deles está no papel de vítima. Jovens que ousaram mudar seu destino pessoal, entregaram-se à luta armada para enfrentar a ditadura.

Deixaram seus sonhos e suas vidas nos DOI-Codis ou na Casa da Morte, em Petrópolis, esse, sim, um porão até hoje inexpugnável, montado pelos facínoras do Centro de Inteligência do Exército (CIE). Alguns deles conseguiram sobreviver durante anos lutando com sequelas físicas e psíquicas. Terapia, câncer, Parkinson, perda de órgãos vitais. Simbolizo em Leo Alves, neto de Mário, um dos criadores do Grupo Filhos e Netos por Memória, Verdade e Justiça, herdeiros que são de sangue e espírito, a manutenção da luta por suas memórias.

À espera de novos documentos da CIA, que não queimou seus arquivos, subscrevo-me. 

* Jornalista, trabalhou no JORNAL DO BRASIL de 1965 a 1969; foi membro da Comissão Estadual da Verdade do Rio de Janeiro e autor de “Tirando o capuz” e “Balé da utopia”