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Liberalismo e Socialismo: termos de um debate pré-eleitoral

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Fantasmas de uma antiga guerra de ideias assombram o Brasil às vésperas das eleições: o confronto entre o liberalismo e o socialismo. Infelizmente, como é comum ocorrer, a escalada de agressão é causada, em parte, por um desconhecimento mútuo e uma desconfiança recíproca. Sendo-nos uma questão tão central que não pode ser tratada levianamente, há de se pensar os termos do debate. 

Do lado daqueles que se identificam com o socialismo, a maioria tem uma visão equivocada da tradição liberal, reduzindo-a ao neoliberalismo. Mas o neoliberalismo é uma forma reduzida e distorcida do liberalismo, que o reduz a uma tese: “o livre mercado garantiria, por si só, as liberdades e os direitos fundamentais”. Contudo, ela é contraditória teoricamente e errônea historicamente; afinal, um livre mercado é compatível com uma ditadura política. Uma “liberdade de mercado e de livre iniciativa” é diferente de uma “sociedade-mercado”. O neoliberalismo não apenas expressa incorretamente os valores liberais, como, sobretudo, suprime as possibilidades de eles se realizarem. Cabe perguntar: o que é liberalismo e em que ele se opõe ao neoliberalismo e aos socialismos? 

Doutro lado, uma maioria daqueles que se identificam com o “liberalismo” tem uma visão equivocada dos socialismos. Eles os reduzem ao “comunismo” e entendem que todo socialismo é estatista e autoritário. Mas o “socialismo real” foi uma das vias socialistas que teve na teoria de Lenin sua grande cartilha. Na esteira da Revolução Russa, tal tradição participou da minimização, aniquilação ou esquecimento de outras formas socialistas, plenamente democráticas. Temos que lembrar que a socialdemocracia construiu, junto com o liberalismo, a base de nosso Estado Democrático de Direito; e não devemos esquecer que existem socialismos associacionistas e solidários, pacíficos e antiestatistas. Cabe então perguntar: o que é socialismo democrático e em que ele se opõe aos liberalismos e à vertente autoritária de socialismo? Infelizmente, nosso debate público não parte de tais questões e é alimentado por uma reprodução de incompreensões. Por que isso? 

Primeiramente, persistem interpretações reducionistas de ambos os lados, tanto de uma intelectualidade tecnicamente adestrada, mas com sofrida formação histórica e humanista, quanto também de quem se identifica com a esquerda, mas que parece viver em meados do século 20 apoiando regimes autoritários em nome da “causa”. Existe, em certa esquerda, um discurso que se reproduz endogenamente em descompasso com as democracias contemporâneas e com as próprias expectativas dos cidadãos. Quando tal desconexão com o presente se combina com um ativismo agressivo e idólatra, o resultado acaba sendo sua ridicularização diante da maioria. 

Em segundo lugar, identificamos que muitos indivíduos da sociedade midiática têm certa ignorância orgulhosa de si, alimentada por estereótipos, lugares comuns e frases de efeitos. Vivemos em uma sociedade de opiniões “patológicas” nos três sentidos do termo: opiniões emotivas e maniqueístas, incapazes de raciocínios dialógicos e bem fundamentados; “passivas”, que reproduzem automaticamente pensamentos alheios crendo manifestar alguma ideia pessoal; e “doentias”, que, por sua vontade de suprimir o outro, são sintomas de que algo não passa bem no psiquismo. Eis um veneno injetado nas democracias. Há uma rigidez de pensamento que não quer superar a lógica identitária a fim de refletir e argumentar a respeito de questões publicamente substantivas, que interessem e engajem todos em torno de problemas públicos a serem enfrentados. 

Por fim, temos a perda de sentido histórico de uma sociedade voltada à sacralização do presente. Com isso, as palavras se tornam, paradoxalmente, ao mesmo tempo muito “evidentes” e “opacas”. As palavras são “evidentes”, pois muitos as utilizam tal como as crianças fazem com as que tentam aplicar sem ainda ter captado os significados. E, com isso, tornam-se um meio de exercer violência contra o outro - “coxinha!”, “petista!”, “liberal!”, “fascista!” - e de reproduzir um sistema cultural massificado que tende a aniquilar a capacidade de pensamento. Mas são também palavras “opacas”, porque elas têm significados sedimentados pela tradição, acionados confusamente no combate. Com a dificuldade de dominar as noções utilizadas, geram-se um mal-estar e a impressão de que encenamos uma grande comédia quando queremos encarnar dramáticos personagens. Os debates se tornam banais, artificiais e vazios, onde os oponentes são muito parecidos uns com os outros. 

Como sair disso? De muitas formas, a começar por adquirir um conhecimento das tradições políticas e do processo de formação das democracias. Contra nossa entropia democrática, é necessária uma neguentropia da educação histórica. Uma forte contribuição poderia vir de um ensino de história, sociologia e filosofia fortalecido para além das polarizações partidárias, deixando aos indivíduos o direito e a capacidade de formarem o seu próprio juízo.

* Diretor do Ateliê de Humanidades