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Cidades, um engenho humano

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Há quem diga que a cidade foi uma das maiores invenções humanas. Talvez sim, mas devemos considerar a moeda como uma delas. Ambas nasceram praticamente juntas e passaram a depender uma da outra, para o bem e para o mal. 

As cidades se desenvolveram como espaços de encontro de pessoas e de negócios, pois o excedente da produção agrícola encontrou na incipiente polis seu local de troca. Ali, também, mais à frente, os produtos manufaturados passaram a ser comercializados. 

Os que conseguiram acumular mais moedas nos negócios estabeleceram poder sobre aqueles que juntaram poucos dinheiros. 

O capital como poder opressor constrói à sua semelhança cidades opressoras. A lógica do poder entre e sobre as pessoas constitui o arcabouço dos aparelhos de Estado, mesmo em sociedades que se pretendem democráticas. 

A história e as filosofias tentam entender e explicar a trajetória das civilizações, e a humanidade procura, incansavelmente, por respostas para os impasses sociais por ela mesma criados. 

O urbanismo propõe soluções para a coerção espacial, paliativas, pois não enfrentam a gênese da formação das desigualdades nas cidades - os que acumularam riqueza material versus os que pouco têm. 

Uma dessas tentativas ocorreu com base nas ideias de Ebenezer Howard, de 1898. Formulou-se o conceito das cidades-jardim, implantadas inicialmente em Letchworth e no subúrbio londrino de Hampstead. Consistia em uma cidade autônoma de gestão comunitária, abrigando diferentes classes sociais, circundada por faixa agrícola, grandes áreas verdes, construções controladas, morfologia até então não encontrada nas principais cidades europeias. Enfim, uma cidade mais humanizada e igualitária. 

O plano-piloto de Brasília, modernista, herdeiro dos princípios estabelecidos pela Carta de Atenas de 1933, de certa forma bebeu nessa fonte teórica do fim do século 19. 

A proposta britânica da garden city, com seus erros e acertos, aspirou a ser um novo paradigma de organização espacial. Porém, apropriada a ideia original pelos que detinham o capital e a terra, foi reproduzido parcialmente o modelo para os segmentos mais abastados da população.   

No Brasil, o controle das cidades pelo poder econômico que comanda o mercado imobiliário criou bairros-jardins tal como Alphaville, em São Paulo. Como de resto, em todas as grandes cidades do país, condomínios de luxo repetem o modelo somente para alguns. 

Numa correlação desigual de forças entre os principais atores sociais é ainda possível a humanização das cidades? Sim, por certo em escalas diferentes em função da segmentação das classes sociais que reitera a regra consolidada numa sociedade estratificada, em razão das relações entre o capital e o trabalho. Entretanto, o direito à dignidade humana deve ser sempre assegurado a todos. 

Os mais pobres sempre acharão nesse labirinto urbano atalhos capazes de melhorar suas vidas em conquistas que serão alcançadas pela sinergia das ações produzidas pelos saberes culto e empírico nas lutas populares. 

Mesmo com ganhos reais pequenos, mas cumulativos, vale a pela participar, cada um a seu modo, desse engenho humano dinâmico e permanente que é a vida coletiva, condição intrínseca das cidades. 

No confronto entre ideias e experiências práticas, a crise se instala. Não se deve temê-la, pois de sua solução um mundo novo pode nascer.

* Arquiteto e urbanista