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A viagem possível

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Os primórdios da nossa civilização, com seus resquícios históricos, estão situados em áreas hoje muito conflagradas. Não passa, hoje, pela cabeça de ninguém visitar Síria, Iraque ou Líbia. Mesmo Líbano, Irã, Egito, Tunísia, Argélia e até Turquia envolvem certos riscos. Para Israel, cristãos e judeus vão por insistência, em busca das origens de sua fé.

O Marrocos, felizmente, continua à margem dessa confusão, ainda que não tenham sido poucos os jovens de origem marroquina que se alistaram no terrível Estado Islâmico. É curioso como o Marrocos vai contornando a crise permanente no Oriente Médio e vizinhos do Norte da África. A religião muçulmana prevalece; os moazin convocam os fiéis para as rezas cinco vezes ao dia pelos alto-falantes instalados no topo dos minaretes das mesquitas espalhadas por toda a parte. A gente simples do povo anda de túnicas – que curiosamente, são de origem judaica, pois tribos vindas de Israel (Ben Israel, filhos de Israel), depois da diáspora no ano 70, chegaram ao Marrocos muito antes do Islã. O uso da burka é rara, mas mesmo entre as mulheres jovens o uso do véu na cabeça é comum.

 Distante uma hora e pouco de voo de Portugal, duas da Espanha, da França ou da Itália, o Marrocos tem hoje no turismo uma fonte preciosa de geração de emprego e renda. Várias de suas cidades contam com aeroportos internacionais. A ocupação francesa e espanhola na primeira metade do século 20 deixou traços da cultura ocidental e faz com que muita gente lá consiga se comunicar em outras línguas que não o dialeto marroquino (o mais difícil dos dialetos árabes), o árabe clássico ou o berbere – idioma aliás, que finalmente tornou-se uma das línguas oficiais do país, corrigindo-se uma histórica injustiça, pois 60% dos atuais marroquinos têm origem berbere, o povo do deserto do norte da África. 

A cultura do Marrocos é uma mescla das tradições berberes, judaicas – sim, por muito tempo o Marrocos foi considerado uma terra judaica – andaluzas, árabes e mesmo romanas. Quando a Cartago berbere de Anibal foi vencida pelos romanos, eles avançaram a fronteira do império na direção do Marrocos, fundando a cidade de Volubilis no ano 40 AC. Foram atrás de terras férteis e óleos. A fronteira não passou daí. Os romanos invasores acabaram não resistindo às investidas das tribos berberes. O Império Otomano também não chegou ao Marrocos. Parou na Argélia. No entanto, França e Espanha acabaram dominando o país por décadas. Diz-se que os franceses transformaram Marrakesh em uma cidade francesa. Mudaram a capital de Fés, resistente à ocupação, para Rabat, em aliança com os árabes. 

A gente simples do Marrocos pede passagem pelas vielas com um “atention” e chama automóveis de “autos” (com acentuação do francês). Entretanto, mesmo os ricos, que deixaram seus luxuosos e espaçosos “riads” para trás, dentro das medinas (as cidades velhas, onde se misturavam com famílias pobres), decoram suas novas casas, as “villas”, fora do centro, com ornamentação marroquina. Pudera, pois é de um tremendo bom gosto, e abandonar essa tradição seria loucura. 

Na política, o Marrocos permanece como um regime avesso à oposição. Mas em hábitos e costumes vai perdendo um pouco do machismo ainda preponderante. Outro dia, um parlamentar, intervindo numa discussão, disse que o plenário estava parecendo um Hamman de mulheres (banheiro público, onde mulheres se reúnem no fim da tarde para tomar banho, fofocar, trocar farpas e, às vezes, uns tabefes). Teve de se desculpar após a reação indignada de uma colega parlamentar. O rei Mohammed é monogâmico. Casou-se com uma nobre de Fés, e todos os marroquinos conhecem a princesa – Marrocos não tem rainha. Hassan II, o antecessor, tinha um harém. E ninguém jamais conheceu suas mulheres. No Marrocos era permitido ter quatro mulheres simultaneamente. Agora não mais. Ao menos oficialmente.

* O colunista esteve recentemente em visita ao Marrocos. Por conta própria