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Viemos de longe

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Menina pobre, órfã de mãe, moradora de um bairro da periferia do Recife, eu poderia ter sido mais uma das vítimas anônimas da fome e da violência. Foi através da militância política de meu pai que consegui ficar em pé. Para angariar recursos financeiros para as famílias de presos políticos do Estado Novo e para a publicação do jornal do Partido Comunista, naqueles anos de 1940, trabalhamos duro. Comercializávamos milho, feijão, chuchu, abóbora, jiló, inhame e pimenta. Metendo a mão na terra, nos meus 10 anos de idade, entendi que a sorte brota do chão. Verdade verdadeira, pois, o que não distribuíamos ou vendíamos ia para a panela lá de casa. 

Papai tinha fugido da prisão, ele participou do Levante Armado Antifascista de 1935. Quando foi barbaramente torturado pela polícia do Filinto Muller, arrancaram todas as suas unhas das mãos e dos pés. Lembro que ele dizia: “Sorte, minha filha, é disciplina; disciplina, por sua vez, traz sorte”. Foi assim que aprendi a ser discreta. Não bradar para os quatro cantos o que fazemos e o que planejamos. 

Nos anos 1950 conheci Luiz Carlos Prestes na clandestinidade. Apaixonados, juntamos nossos trapos. Tive que deixar de ser Altamira Rodrigues Sobral (meu nome verdadeiro), para assumir identidade de Maria do Carmo Ribeiro, supostamente nascida em Itajubá, Minas Gerais. Como foram úteis os ensinamentos de papai, quando ganhei a nova certidão de nascimento, válida até os dias de hoje! Com Prestes e nossos filhos tive que abandonar os locais onde morávamos inúmeras vezes, deixando tudo para trás. O que importava era continuar a luta pela democracia. Nas novas casas, sempre eu criava uma horta e mantinha a disciplina, para ter sorte. 

E tive muita sorte nos anos de 1960/1970, após o golpe de 1964. Enquanto muitos de nossos líderes banidos pelo novo regime foram para a França, Inglaterra, EUA, Alemanha ou Suécia, embarquei com todos os meus nove filhos para a União Soviética, onde conheci a primeira experiência de socialismo real no mundo. Com exceção de um filho, que desejou voltar para o Brasil, todos os outros terminaram na Rússia a escola e realizaram seus cursos universitários nas áreas de engenharia, química, pedagogia, medicina e cinema. O primeiro, dos 25 netos, nasceu em Moscou. Hoje já tenho 20 bisnetos! 

A sorte me acompanhou quando, nos anos 1970/1980, juntamente com Prestes, voltei para o Brasil e reencontrei meus parentes diretos e amigos, após o Decreto da Anistia. Alguns pensavam que desde 1950 eu estava morta. O escritor Jorge Amado, quando soube que eu era a mesma Altamira que um dia ele conheceu criança, disse: “Quanta disciplina você teve que ter, para abandonar sua verdadeira identidade e mergulhar na luta junto com Prestes”. 

Foram anos difíceis, todos aqueles que vieram após o falecimento de Prestes, dia 7 de março de 1990. Assisti ao desmoronamento da União Soviética e de todo o campo socialista da Europa. O mais fácil teria sido desistir de tudo e amaldiçoar os anos de militância na clandestinidade e no exílio, quando milhares de mulheres foram torturadas e assassinadas, porque levantaram a bandeira da igualdade. 

Consegui ficar em pé, apesar de tudo. Elaborei a minha visão crítica do caminho que percorri, não confundindo as minhas vitórias com as minhas derrotas. Até porque, vim de longe. 

Finalmente, sorte grande foi a de ter vivido no mesmo período histórico que uma Maria Werneck e uma Beatriz Bandeira Ryff, companheiras de cela da heroína Olga Benário, nos anos 1936-1937; de uma Zélia Magalhães, assassinada num comício, em 1944; e de uma Sonia de Moraes Angel, torturada e morta, em 1973. Também de ter recebido recentemente em minha casa a vereadora Marielle Franco.

Vivi um século de conquistas femininas. Mas, infelizmente, a fome e a miséria não foram vencidas em nosso país. Os problemas sociais continuam sem solução. A desigualdade aumenta, com os homens do poder desejando combater a violência através de mais violência. Por isso, tenho a convicção de que ainda terão que surgir muitas e muitas outras mulheres na política para liderar o povo em sua luta.

*Militante política e viúva de Luiz Carlos Prestes