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Privatiza tudo! O brado da desistência 

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Geralmente, clamores heróicos são de resistência, mas, no Brasil estamos assistindo uma novidade, o brado da desistência. Na nossa atávica volúpia de destruir o que construímos sem muita reflexão, o Estado brasileiro está prestes a perder o controle da Eletrobrás. A sociedade, com o costumeiro pouco interesse pela sua história, confunde a identidade da empresa com os péssimos governos recentes e acha que ela não passa de um “puxadinho” do palácio. Aproveitando essa ingenuidade, o atual governo, repleto de personagens que também compunham a administração anterior deposta, ilude a sociedade desarticulada derramando informações parciais e até falsas. 

Acossada por altas tarifas, as vítimas sequer sabem porque os preços sobem. Sequer sabem que encarecem desde 1995, marco zero da privatização. Como o setor público brasileiro prima pela desonestidade, todos imaginam que sua alta conta de luz é culpa de alguma estatal. Qual é a disponível?  A Eletrobrás. 

O “privatiza tudo” acredita que a tarifa vai baixar com seu brado. Devem crer em milagres, pois, após a venda, sua energia vai ser 10 vezes mais cara do que a estatal foi obrigada a vender na intervenção de 2013. Nesse mundo de trevas, só resta a pergunta: caso a tarifa permaneça cara e os serviços ruins, depois de garantir a eliminação dessa empresa pública, a quem vão culpar? 

moDurante um debate, ao citar a confusão dos postes de distribuição nas cidades como exemplo evidente de ineficiência, fui surpreendido com a dúvida sobre aquela cena ser de responsabilidade das empresas estatais. Surpreso, tive que esclarecer que esse cenário está em todas as cidades brasileiras, principalmente os servidos por “eficientes” empresas privadas. Percebendo o desconhecimento, mencionei que o setor elétrico brasileiro já é privado em sua maioria. Na distribuição, 90%, 53% na transmissão e nem a geração de energia temos mais o controle majoritário de estatais (apenas 35%)! 

Desconfiem do discurso oficial. A Eletrobrás é muito mais do que uma caixa registradora, como o governo a apresenta. Se, hoje precisamos de Operador Nacional do Sistema, Empresa de Pesquisa Energética e Câmara de Comercialização de Energia Elétrica, no passado a Eletrobrás fez todos esses papéis com invejável sucesso. A capacidade de geração desde sua fundação saltou de menos de 5 GW para mais de 130 GW. Se temos um sistema de transmissão de porte continental, devemos a ela. 

Depois de ser obrigada exercer funções suplementares num modelo instável e arriscado, em 2013 foi atingida pela intervenção que pretendeu reduzir tarifas atingindo exclusivamente suas usinas e linhas. Ao contrário do que dizem as atuais autoridades, durante todo esse tempo colaborou com o pagamento de dividendos ao governo. Por incrível que pareça, assim se conseguiram as condições que desembocaram no discurso da sua venda. 

Não estou demonizando a privatização, e se existe algum radicalismo, é contra as empresas estatais. É comum assistir o discurso da privatização quando empresas estatais são ineficientes. Entretanto, a situação simétrica é inexistente. O exemplo mais evidente é o do serviço de ônibus urbano, totalmente privado há séculos, que, além de prestar péssimos serviços, esteve envolvido em graves casos de corrupção. Por que, nem nesses casos extremos, admite-se a hipótese de cassação desses serviços e a construção de um sistema integrado, controlado pelas prefeituras, rigorosamente fiscalizado como ocorre nas maiores cidades do mundo desenvolvido? 

Se outros países, tão capitalistas quanto se queira, têm estatais, que maldição teria o Brasil para não poder ter empresas públicas bem geridas? Estatais americanas têm mandatos fixos para sua diretoria e nenhum presidente, por mais poderoso que seja, pode interferir na sua gestão. Relações empresa/Estado devem estar firmadas em contrato público. Crimes praticados em empresas públicas devem ter punições diferenciadas. No Brasil, são tantos os recursos e brechas legais que a justiça brasileira não é temida. Bastaria ter a coragem de eliminá-los. 

É verdade que empresas estatais estiveram a serviço de políticos desonestos. É verdade que empresário privados se aproveitaram. Mas também é verdade que ministérios e até o Congresso defenderam interesses privados. Portanto, o problema não são os “braços”. Sobre a Eletrobrás, é preciso não confundir a ferramenta com a mão que a manipula. Um serrote pode matar uma pessoa, mas ao se desfazer dele, perdemos a possibilidade de construir e não eliminamos o mau uso do mesmo serrote. Privatiza tudo é o mesmo que “Eu desisto!”.

* Diretor do Ilumina - Instituto de Desenvolvimento Estratégico do Setor Elétrico