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Intervenção para quem?

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Após o pronunciamento público de militares e de civis, alguns deles responsáveis em executar o projeto de intervenção na segurança pública no Estado do Rio de Janeiro, decretada pelo governo federal, necessário certas reflexões sobre o quadro. 

Ao contrário do que se esperava, pelo menos para parcela considerada da opinião pública, levada em princípio a legitimar o emprego das Forças Armadas em razão das notórias reportagens surgidas no carnaval de 2018, dando conta de uma onda de crimes, a atenção das forças de repressão estarão voltadas, mais uma vez, para o combate ao tráfico de entorpecentes.

Causa preocupação a leitura de jornais e programas de televisão nos quais se veiculam manifestação de membros das Forças Armadas, reclamando, por exemplo, independência para o militar que vier a  matar alguém que esteja portando fuzil, sem que sobre o executor recaia qualquer responsabilidade, inclusive de ordem penal, fazendo crer que se assumiu de vez o discurso de que eliminar o indesejável, ou quem assim seja considerado, é condição sine qua non para dar segurança pública, além de isentar de pena quem pratica, nessas circunstâncias, crime de homicídio doloso. 

Criam-se, com isso, duas figuras: a primeira, a de alguém que se encontra acima da lei penal, o executor do crime; e a segunda, a da vítima, cuja vida é descartável a critério da operação militar da hora. 

Ainda que se considerassem as duas situações, à revelia da lei e de valores humanitários, como legítimas, não há resposta para a hipótese de o tiro disparado atingir inocentes.

A menos que, em um juízo de valor preconceituoso, se tenham todos os moradores de favelas como seres indesejáveis, suscetíveis de serem executados pelo Poder Público. 

Ora, as favelas são densamente povoadas por homens e mulheres de bem, trabalhadores em sua esmagadora maioria e não parece razoável uma reação desse tipo. 

Nenhuma palavra nas referidas manifestações foi dada ao combate à criminalidade comum, que tanto assusta e prejudica a vida de milhões de trabalhadores, inclusive das famílias moradoras dessas mesmas comunidades. As milícias, então, foi como não existissem. 

A prioridade parece realmente ser o combate ao tráfico de entorpecentes, tanto que o novo Ministro da Segurança Pública, representando o poder civil, em entrevista recente, imputou à classe média carioca parcela maior da culpa pela violência, divulgada pelas TVs, que, com o comportamento de adquirir, segundo ele, substâncias vendidas pelos traficantes, não teriam direito de se queixar dos assaltos e do clima de insegurança da cidade. 

Para o Ministro, a classe média alimenta a violência urbana. Não se quer acreditar que o Ministro de Estado da Segurança Pública esteja preparando, com a mencionada entrevista, a adoção de medidas para justificar um eventual extermínio da classe média carioca, responsável direto, segundo ele, pela criminalidade no Rio de Janeiro. Se não houver compradores de entorpecentes, na lógica ministerial, não haverá crimes. 

Não é assim que se combate o tráfico de drogas. Vamos com calma. Afinal, o que se quer com a intervenção? É medida inócua, e feita ao arrepio do estado democrático de direito, combater o tráfico de entorpecentes somente com militares nos morros cariocas, disparando suas armas contra portadores de fuzis. 

Da mesma forma, caso se concretizasse a estapafúrdia ideia de exterminar a classe média, compradora de drogas, no dizer do Ministro, nem por isso o consumo de entorpecentes iria desaparecer. 

A produção da droga, a importação de armas, o controle das fronteiras, o combate à corrupção, o tratamento clínico para os dependentes, enfrentar o assunto sob a ótica de saúde pública e não de direito penal e fundamentalmente a inteligência policial, tão aviltada nos últimos anos, se constituem em importante política de segurança pública.

Por outro lado, a medida implementada pelos interventores militares, retratada nos jornais, como a do fichamento de moradores de favelas, não encontra respaldo na legislação e deveria cobrir de vergonha seus corifeus. 

O Poder Público, corporificado nas Forças Armadas, está tratando famílias inteiras, compostas por seres honrados, como se indesejáveis fossem pelo fato exclusivo de morarem em favelas. 

De modo que a intervenção militar na segurança pública desconsidera tanto os moradores da periferia quanto a classe média. É de se indagar, em consequência: a quem interessa essa intervenção? 

É preciso repetir: não há solução fora da lei. 

Torçamos para o Poder Judiciário, assim que provocado, declarar o respeito à ordem constitucional como valor supremo independente da vontade de governos e restabeleça, o quanto antes, entre nós, o estado democrático de direito.

*Professor de Direito da PUC-RJ e procurador de Justiça – MPRJ