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Revolução do dom com senso de oportunidade

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Vivemos em tempos de mutações. Alguns veem nisso abismos rumo a catástrofes; outros, alternativas para transformações. Da decomposição do velho surgem as possibilidades do novo. Na sequência de dois artigos escritos por mim aqui no JB, a favor de uma “revolução do dom”, perguntemos agora: quais são as oportunidades existentes?

Temos muitas razões para desencantos. Mas compartilho a visão do filósofo Marcel Gauchet: sou pessimista a curto prazo, mas otimista a longo. Vale ressaltar que permanece, mais do que se imagina, um espírito de dom, de generosidade e de reciprocidade espraiado pelo social (sobretudo na vida privada, mas também nas instituições, nas organizações e nas relações informais na vida pública). Além disso existe uma série de transformações que trazem alternativas ao utilitarismo radicalizado ou a um “tudo-mercado”. Na esteira das novas tecnologias, surgem ideias e práticas mais híbridas, que misturam privado e público, individual e social, interesse e desinteresse, competição e cooperação, técnica e moralidade, instrumentalidade e comunicação. Muitos são os nomes e propostas: solidárias, civis, cooperativas, colaborativas, “de compartilhamento”, associativas etc. Com elas, aspectos centrais da economia, como modos de produção, distribuição e consumo, o crédito e a moeda, os regimes de propriedade e de “lucro/interesse”, estão tendo inovações que poderão virar práticas generalizadas, ao mesmo tempo eficientes, justas e éticas. Além disso, vemos fervilhar propostas em torno do direito, dos saberes, da ética e de ações sociais, estatais e públicas.

Eis um cenário de oportunidades. Se nossa humanidade sobreviver à (talvez) passageira onda de demência moral e intelectual e ao (certamente) duradouro desafio ecológico e social, teremos boas razões para vislumbrar um mundo melhor. O que não quer dizer que não haja, também, problemas mais complexos. Basta citarmos o desafio de gerar renda, segurança e vida digna para os trabalhadores que perderão seus antigos postos e, também, para aqueles que, prestando serviços, se deparam cada vez mais como a regra da flexibilidade, do baixo preço ou, até mesmo, da pura e simples gratuidade. Independente disso, o que entender por “revolução” do dom? Proponho dois sentidos.

Antes de tudo, um sentido antigo, como uma volta sobre nós mesmos (re-volutio) que reative estruturas antropológicas e gere outra compreensão do que somos. Afinal, toda revolução começa por si mesmo; o que ocorre quando assumimos uma ética capaz de conformar nosso modo de vida. A aposta é que a lógica do dom nos conecta com os valores que mais prezamos e é uma opção de vida bem realista; pois o sábio uso da arte do dar se relaciona a uma “vida bem sucedida”. Como dizem os sociólogos A. Caillé e Ph. Chanial, nossa individuação realizada e autônoma depende da intersubjetividade dos dons.

Mas quando falo em “revolução” penso também em outro sentido: o que precisamos fazer para florescer tal lógica? Ora, se sinalizamos as potencialidades existentes, precisamos, igualmente, de um olhar crítico que observe, com senso de realidade, quais são as estruturas sociais e as dinâmicas institucionais que dificultam e, mesmo, impossibilitam formas alternativas de vida, ação e trabalho. Fazer revolução é, portanto, orientar-se para transformar, com vontade, as estruturas.

Todavia, estejamos longe de defender as revoluções d’outrora; afinal, a era das panaceias terminou. Se, há pouco, “revolução” significava tomada de poder do Estado e transformação total da sociedade, hoje nos são exigidos mais humildade e reconhecimento da complexidade. Mas se, com o desvanecimento das ilusões, é fácil fugir para o conformismo desencantado, o catastrofismo crítico ou o populismo messiânico, digamos que criticistas, conformistas e populistas hão de perder suas auras sedutoras. Sendo inaceitável aderir aos males existentes, é insuportável só criticar tudo, anunciar apocalipses ou apelar a demiurgos; importa aproveitarmos as oportunidades existentes e ampliar, afetiva e cognitivamente, nosso campo dos possíveis. Como nos ensinou o sociólogo Max Weber, “a política é como a perfuração lenta de tábuas duras”, o que “exige tanto paixão quanto perspectiva”. Munidos de uma ética da responsabilidade e de uma “fortaleza de coração”, temos que nos mover em busca do que é possível, sem perder a consciência de que, muitas vezes na história, ele só é alcançado quando é o impossível que almejamos.

* Doutor em Sociologia (Iesp-Uerj) e diretor do Ateliê de Humanidades

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