As contradições do capitalismo: r > g

Por Des. Antonio Carlos Esteves Torres

De acordo com as conclusões de Thomas Piketty, no seu já muito citado e pouco lido (a maioria que vai citada abaixo tem o mesmo destino) “O Capital no Século XXI” [1], entre as forças convergentes e divergentes, na dinâmica da evolução de uma economia de mercado e da propriedade privada, a circunstância mais desestabilizadora está ligada ao fato de que as taxas de rendimento privado do capital (r) podem ser forte e duravelmente mais elevadas que as taxas de crescimento do salário e da produção (g).

Para chegar a este ponto do fecho de seu trabalho, Piketty, professor da Escola de Economia de Paris, percorreu, com a ajuda de pesquisadores de diversas partes do mundo, durante quinze anos, os caminhos dos estudos sociais e históricos da dinâmica da distribuição das rendas e patrimônios, a partir do século XVIII. Malthus, Young, Marx, Adam Smith, Ricardo, a Revolução Francesa tiveram seus destinos cruzados, para dar resposta a uma indagação perturbadora, no tocante às vias doutrinárias da matéria, em direção esclarecedora do significado de distribuição de renda: “o quê, verdadeiramente, se sabe sobre a evolução do fenômeno, a longo prazo?”.

Em primeiro lugar, uma advertência sobre a metodologia deste trabalho. Com a avassaladora dominação dos meios tecnológicos de informação, a exemplo do que se faz configurado em obras do intelecto, especialmente, as cênicas, à semelhança com o que já foi dito ou pensado, anteriormente (os puristas das colunas dos periódicos, entendem o uso desse advérbio, nesta circunstância, um erro), o que se verificar de igualdade entre o escrito e exposto preteritamente será coincidência. Nem tanto. Tudo, ou quase tudo, já foi escrito antes acerca de tudo. É só consultar os programas “internéticos”. O grande problema, agora, é a real visibilidade dos fatos. Há erros ocultos na certeza do Google. Uns consentidos e até objeto de advertência, outros, desgraçadamente, sob a capa da verdade invencível.

Logo, cabe a indagação: Então, para que escrever? Para rebater, contestar, concordar, enfim, para a utilização das obras, no que têm de mais nobre: suscitar o debate dialético. Adequar à verdade do momento o conceito real de verdade. Ajustar a realidade dos fatos. Estes conceitos ainda gozariam de prestígio?

Durante o transcorrer das últimas semanas, o mundo literário foi informado de que o terceiro Volume da obra “Diários da Presidência”, de autoria do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, já está nas livrarias. Entre outras declarações dignas de nota, está: “O Brasil não gosta do sistema capitalista. Os congressistas, os jornalistas, os universitários não gostam do capitalismo. E no capitalismo, têm horror aos bancos, ao sistema financeiro e aos especuladores. Eles gostam do Estado, eles gostam de intervenção, de controle de câmbio, enfim, ser conservador é melhor do que liberal” [2]. O pensamento ganha nível de credibilidade ao estilo do “Pobre gosta de luxo, quem gosta de lixo é intelectual...”, como sentenciou o filósofo do samba – do povo, portanto, - Joãozinho Trinta.

De nossa parte, a reedição da pesquisa desses dizeres confirmadores da verdade axiomática tem sua utilidade específica: O municiamento dos que se dedicam a materializar o direito, com dados capazes de garantir a correta interpretação dos fatos econômicos no caminho do fazimento de justiça. Ou alguém acha que a onerosidade excessiva, capaz de resolver contratos[3]. dispensaria inteiramente emprego das noções da ciência econômica? Ou dos pilares filosóficos que garantem o raciocínio?

O Direito Empresarial reúne entre seus componentes longa e complexa série de ramos científicos ligados basicamente aos fatores econômicos. Desta forma, uma vez mais, repercorrem-se os caminhos desta repartição do conhecimento, através do qual e de seus tentáculos, procura-se oferecer subsídio capaz de auxiliar o profissional que se ocupa da dinâmica da composição dos litígios, estaca do equilíbrio social.

Assim como a Bíblia, talvez a obra mais conhecida de todas, tem interpretações divergentes e inúmeras, o direito e seus escritos não são objeto de unanimidade intelectiva confortável. Carnelutti, em “A Morte do Direito”, destila respeitável pessimismo, acusando o fato de o direito servir cada vez menos, “...à medida que, realizando sua história, os homens marcham em sentido contrário: uns para a maldade, outros para a bondade, uns para a escravidão, outros para a liberdade... “Nossas considerações não vão a tanto, até porque, o próprio autor afirma : “Certamente, o direito ainda não morreu...”, ainda mais com a criação de tantas leis, o que  “...poderá parecer que nunca esteve tão vivo como agora. Mas essa vitalidade ilusória é, antes de tudo, a febre que o consome”[4].

Enquanto não experimentamos a sensação de viver sem direito, temos insistido, com alguma frequência, na reiteração de facetas de economia política, no caminho do papel do magistrado, a começar pelo reconhecimento de algum hesitar com respeito à integral adoção do sistema capitalista como filosofia principiológica no Brasil. Ao garantir a livre iniciativa e o direito à propriedade, como se extrai do art. 170, da CRFB, fica ratificada a opção, apesar do compromisso com o fim social da propriedade, não completamente identificado com objetivos capitalistas; a defesa do consumidor, e o inarredável dever do Estado de assegurar a saúde a todos, mediante o financiamento de toda a sociedade (artigos 194,195 e 196 da Lei Fundamental).

Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade... O texto do art. 5º da CRFB, alicerce inaugural dos Direitos e Garantias Fundamentais, arregimenta os direitos e deveres individuais e coletivos. Em linhas gerais, ainda configura cenário de utopismo o exercício dos valores e princípios teoricamente inseridos no cânone. A igualdade num país de desiguais se apresenta sob diversas facetas. Dentre elas a que materializa o estudo de Piketty, consolidador das investigações que revelam o 1% das gentes deter 90% de tudo que se produz no mundo.

A criminosa ordem natural das coisas, estrela principal desta peça, com que a indiferença ornamenta o comportamento de quase toda a gente, entre outros episódios do mesmo estilo, reduz à categoria de sarcasmo o entendimento do que a Lei Maior descreve como salário mínimo, “... capaz de atender às suas necessidades vitais básicas e às de sua família com moradia, alimentação, educação, saúde ...” (esses dois deveres do Estado) “...lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social...”

Em situação mais grave, a despeito de, aqui e ali, alguma reação irromper, ao menos aparentemente, sob forma pouco organizada e dispersa, como a occupy wall street; je suis Charlie; women against TrumpBlack lives matter, com resultados diluídos, diante da força que produzem os rendimentos capitalistas,em confronto com o subemprego, compensatoriamente, almejado e disputado, nas circunstâncias, ao estilo da ansiedade consolativa,na busca do prato de comida e do lugar de dormida,através de que  se admitia ao escravo forro a semivida e  cuja pseudoliberdade nunca terá sido plenamente alcançada. A resiliência e complacência com que estes fatores são praticados, por todos, são estandartes da supremacia desta ordem natural das coisas, covarde e desumana. Ao vencedor as batatas. (Uma releitura em Quincas Borba vai ajudar a revisão dos conceitos da seleção natural, mãe da lei do mais forte, e a sua invencibilidade).

Estranhamente, livros que ameaçam demonstrar que “o rei está nu”, como o de Piketty, já encontrado em bancas de usados, ou o de Galbraith, a economia das fraudes inocentes, não visto sequer em sebos, vão desaparecendo com nevoeiros leves, dissipados em espaço diminuto de tempo. Já há quem pense, decididamente, na invencibilidade da fantasmagórica ordem natural das coisas, embora, séria e cientificamente, haja também quem se detenha na definição do que seja ordem natural e coisas. Negro é burro, mulher é prostituta. E, a despeito de diferenças inevitáveis, além da escabrosa injustiça, a raça e o gênero são irremediavelmente considerados inferiores.

Se você, raro leitor, não pensa assim, conhece alguém que pensa assim. A hipocrisia, corajoso analista, vai disfarçando a incerteza da tese com a finura de educação e o ajuste de comportamento, pelos caminhos do linguajar eufêmico do politicamente correto e da forçada aceitação coercitiva das ações afirmativas. Tudo sem revogar o pensamento incrustado na realidade de seu interior imperscrutável. Colega magistrado, ilustre causídico, nobre defensor público, honrados membros do Ministério Público. O capitalismo e o socialismo têm a mesma trajetória de conceitos, enquanto sistemas de gestão filosófico-político. Mas, dependendo da forma, ostentam suas diferenças ditadas pelas características próprias. O poder do Estado socialista se encarrega mais evidentemente de atuar com a violência que elimina (Vide Trotskie, recentemente, Boris Nemtsov, e, um pouco antes, Alexander Litvinenko). O sistema capitalista usa outros métodos, não raro também violentos, seja a falta de oportunidade, até a morte por fome, seja o uso das organizações privadas sob liderança do cidadão, como a Ku Klux Klan.

Essas divergências não agradam a ninguém que tenha um mínimo de consciência. E tanto isso é verdade que, como assevera Galbraith[5]: As firmas passaram a ser conduzidas por administradores, não apenas os “donos” do capital. Como o termo capitalismo evoca, às vezes uma história amarga, o nome está em declínio. Na respeitável expressão de economistas, porta-vozes do mundo dos negócios, cuidadosos oradores políticos e alguns jornalistas, capitalismo,agora, chama-se Sistema de Mercado, comum aos dois sistemas, guardadas as devidas proporções.

O próprio autor desvenda grande parte do mistério, ao descrever o mito dos dois setores, público (imagem socialista) e privado (característica capitalista): “... a interferência do por assim dizer no setor público, ostensivamente, do setor privado converteu-se em lugar comum... os dirigentes das corporações estão em aliança fechada com o Presidente, o Vice-Presidente e o Ministro da Defesa. As maiores figuras da administração das corporações também têm destacadas posições em qualquer lugar do governo federal. Um saiu da falência e do roubo da Enron, para chefiar o Exército.” [6]

Dispensamos exemplos contundentes de nosso mais efetivo presente. É só ler os jornais.

Já houve quem, com toda a franqueza, me tivesse indagado, como está lá no quarto parágrafo, a razão expositiva dessas diferenças sistemáticas. Aí vão algumas considerações capazes de estimular o eventual leitor a duras reflexões: Em primeiro lugar, o mundo está conectado, como se observa do trabalho do Mestre em Artes de Estudos sobre a Guerra, Marcelo Malagutti, publicado pelo King’s College London, em que o autor adverte: “as cyber armas também estão integradas no espaço global. Os efeitos de ataques em qualquer ponto podem se espalhar de forma inconcebível muito além do alvo e até voltar ao ponto de partida atacante”[7]. É o mundo dos computadores. Todos somos parte dele.

Se assim for, mesmo com grandes prejuízos políticos, o lobby das grandes potências industriais, especialmente ao se tratar da atividade farmacêutica, atinge grau patológico e, no combate aos “inimigos”, acaba por sustentar a guerra entre elas.

Recentemente, a insuspeitável Volkswagen teve de pagar uma multa gigantesca por ter usado de meios escusos no licenciamento de veículos movidos a diesel, nos Estados Unidos da América do Norte. É fato notório e cercado de consequências danosas para a organização alemã, obrigada a pagar bilhões de dólares norte-americanos e a recomprar todos os carros afetados [8].

Nesta altura, é hora de indagar se a cibernética ainda é desconhecida de nossos operadores do direito, em qualquer nível, a despeito de o povo brasileiro analfabeto nem supor de que se trata, salvo se alguém tiver ingerido Talidomida entre o final dos anos 1950 e 1960, e hoje ainda sofra a tragédia dos efeitos em seus filhos. Não havia internet e a informação nem sequer existia.

Maldonado de Carvalho, desembargador, professor, especialista em direito do consumo, na Revista Luso-Brasileira nº24 [9] levanta a cobertura misteriosa do sistema de recall, que, na realidade, está em estudo para que se possa saber se se trata do acaso do defeito oculto, ou de controle de qualidade a posteriori. Ou alguém não sabe o que é o recall?

Enquanto os ingênuos continuam de costas para os fatos, duas circunstâncias forçam a entrada nos presentes comentos, para a resposta da inevitabilidade de estudos como este. Em primeiro lugar, a mutabilidade dos fatos e a necessidade de adaptação teórica e doutrinária, como se colhe do livro de J.J.Gomes Canotilho[10], no qual o constitucionalista lusitano, após longos anos de reorganização de pensamento sobre o dirigismo constitucional, passou a entende-lo equivocado, porque o texto fundamental assumira papel de dirigismo programático, transformando-o em bíblia de promessas não concretizadas.

Em segundo lugar, o apego ferrenho de quem ainda usa as dicotomias maquiavélicas direita/esquerda; socialismo/capitalismo, e outras duplas conceituais e históricas empedernidas, esbarra em socialistas que compram equipes de futebol, ou em comunistas a administrar empresas, como é o caso do temível Sr. Igor Sechin, instrumento do poder putiniano, a conduzir a empresa petrolífera Rosnefts, que, além de ajustar a estrutura americana do Sr. Trump [11], ainda traz de volta o sonho do petróleo de volta a Carauari, na Amazônia.

Toda gente sabe que os mais velhos estão mais sujeitos a desentendimentos com bancos e mais vulneráveis a fraudes e exploração financeira, às vezes por parte de familiares. Abusos financeiros são os mais difíceis de monitorar, o que acaba por envolver, ao menos na América do Norte, bilhões de dólares, em operações desta natureza. Pois muito bem. Uma das razões mais eficientes da continuação da prática está no que os órgãos de proteção ao consumidor reconhecem: “Está valendo a pena desrespeitar o consumidor”.

A estes exemplos funestos somam-se situações misteriosas de imensos prejuízos, incluídas todas nos resquícios das contradições capitalistas, cuja maior fraude está na luta inglória contra a desigualdade, fraude maior do engodo socialista. Estão no livro recém-lançado, “A era do imprevisto”, do sociólogo Sérgio Abranches [12], as explicações desta desgraça, e do qual se retiram lições preciosas para todos, especialmente para a magistratura, obrigada a lidar com a indiferença com respeito aos menos afortunados e resistir ao poder dos invencíveis, no caminho utópico da busca de igualações improváveis e resultados diminutos na materialização dos direitos fundamentais da Constituição.

Este lembrete não tem por escopo optar entre capitalismo ou socialismo, dicotomia antiquada e inútil, como há pouco se demonstrou. Seja um sistema ou outro, a covardia, o descaso o frontal desrespeito do mais fraco se une a outros tantos objeto de trabalhos produzidos para o CEDES, cuja finalidade é convidar os magistrados a rever seus conceitos e angariar meios para a reflexão da vida, quando estiverem no sagrado dever de fazer justiça.

[1] PIKETTY, Thomas. Le capital au XXIe siècle. Paris: Editions du Seuil, 2013, p. 942.

[2] CARDOSO, Fernando Cardoso. Diários da Presidência.  Volume III. São Paulo: Cia. das Letras, 2017. O trecho é parte do conselho do ex-presidente a Armínio Fraga, antes da sabatina no Senado, em 1999, que aprovou sua indicação para a Presidência do Banco Central.

[3] Código Civil Brasileiro, 2002, art. 478.

[4] CARNELUTTI, Francesco. A morte do Direito. Belo Horizonte: Editora Líder, 2003, p. 22 e 23.

[5] GALBRAITH, John Kenneth. The economics of innocent fraud – truth for our time. Boston: Houghton Mifflin Harcourt, 2004, p. 3.

[6] GALBRAITH. Op. Cit. p. 35 e 36.

[7] MALAGUTTI, Marcelo. State-Sponsored Cyber-Offences. In: Revista da Escola de Guerra Naval. Volume 22, nº 2 (p.261-290), mai./ago. 2016, p 279.

[8] O Globo. Edição: 22/04/2017, p. 18.

[9] CARVALHO, José Carlos Maldonado de. Garantia legal e garantia contratual. In: Revista Luso-Brasileira de Direito do Consumo, Volume VI, nº 24, 2016.

[10] CANOTILHO, Gomes J. J.“Brancosos” e Interconstitucionalidade - Itinerários dos discursos sobre a historicidade constitucional. Coimbra: Almedina, 1999, pp. 31 e 32.

[11] The Economist. 28/01/2017, p. 58.

[12] ABRANCHES, Sérgio. A era do imprevisto. São Paulo: Cia. das Letras, 2017.